Um dos aspectos mais angustiantes desse processo eleitoral foi a completa ressignificação de “liberalismo”, com pouquíssimas das implicações originais do termo, e “socialismo” ou “comunismo” em que cada um atribui o significado que lhes dá na cabeça. Assim, sem obedecer aos significados formais das palavras, naturalmente, fica mais fácil provar que o Deus a quem sigo está mais próximo dos meus argumentos.

Bem, considere-se você alguém de “direita” (seja lá o que você entenda disso) ou “esquerda” (seja lá etc.), se você é cristão, deve acreditar que “a religião que nosso Pai aceita como sincera e imaculada” é “cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades”. Está lá em Tiago 1.27. Ou seja, exatamente PORQUE SOU CRISTÃO, a escolha entre um candidato de inclinação/influência/confissão socialista (seja lá etc.) ou capitalista (seja lá etc.), deve, OBRIGATORIAMENTE, passar pela capacidade, ou intenção, ou promessa dele em cuidar dos mais frágeis, daqueles que, por alguma razão, foram entregues à sua própria sorte. Se você acha que o melhor caminho para isso é esperar que o bolo cresça para dividi-lo ou dividi-lo desde a massa pilada, é outra discussão, para outro dia.

Há uma história contada por Jesus que, na minha avaliação, mostra com clareza desconcertante como Jesus estava acima das simplificações dos sistemas econômicos e políticos, como ele estava acima de polarizações e fla-flus e, ainda assim, como a sua coerência espiritual continuava firme. É a parábola conhecida como a dos “Trabalhadores na Vinha”, em Mateus 20. Nela, Jesus afirma que “o Reino de Deus é como o administrador de uma propriedade rural que saiu bem cedo de manhã a fim de contratar pessoas para trabalhar em sua vinha. Eles concordaram em receber uma moeda de prata por dia, e foram trabalhar. Mais tarde, por volta das nove da manhã, o administrador viu alguns desempregados andando pela praça da cidade. Ele lhes propôs que fossem trabalhar em sua vinha a um preço justo. E assim foram. O administrador fez o mesmo por volta do meio-dia e de novo às três da tarde. Às cinco horas, ele saiu e ainda encontrou homens desocupados. E perguntou a eles: ‘Por que estão aí o dia inteiro, sem fazer nada?’. Eles responderam: ‘Porque ninguém nos contratou’. Então, ele os contratou também para trabalhar na vinha. Quando o expediente terminou, o proprietário da vinha instruiu seu capataz: ‘Chame os trabalhadores e pague o salário deles. Comece com os que foram contratados por último e prossiga até os primeiros’. Os que foram contratados às cinco da tarde vieram e cada um deles recebeu o mesmo valor acertado com os primeiros. Quando os que foram contratados primeiro viram isso, imaginaram que iriam ganhar mais. Contudo receberam o mesmo valor.”

Os trabalhadores da vinha © lds.org

É claro que as aplicações desse texto são diversas, as espirituais e as mais pedestres. Uma amiga de inclinação mais liberal enxergou com clareza que, diferentemente dos governos socialistas, o proprietário (que é Deus) não foi assistencialista; antes, ofereceu trabalho com o qual eles pudessem ser pagos. Um amigo de inclinação mais socialista notou que, embora uns tivessem trabalhado o dia todo e outros trabalhado poucas horas, o salário foi o mesmo porque o ser humano tem uma dignidade mínima a ser suprida, e porque a desigualdade é o primeiro passo para a violência. Eu acho que ambos estão certos, porque Jesus é mais do que sistemas humanos.

Mas outra coisa parece clara pra mim, e aqui peço licença para usar a Bíblia contra minhas inclinações sanguíneas: nossa cabeça é programada para funcionar de forma meritocrática. Se eu trabalho mais, É ÓBVIO que eu vou ganhar mais; se fulano performa menos, ELE MERECE ganhar menos. O texto continua dizendo que os trabalhadores ficaram “revoltados” com o sistema igualitário de pagamento e foram reclamar com o administrador: “O último grupo trabalhou por uma hora, e você pagou a eles o mesmo que a nós, que trabalhamos como escravos debaixo de um sol escaldante?” Ao que o administrador responde: “Amigo, não fui injusto. Nós concordamos com esse valor, não concordamos? Então, pegue seu dinheiro e vá embora (…) Você vai se mostrar mesquinho por eu ter sido generoso?”

A Bíblia vai nos incentivar a olhar o mundo com os olhos de Deus. E me parece claro que Deus prefere quem divide a quem acumula. E parece que é mais próximo do Reino de Deus que todos tenham o suficiente do que alguns tenham muito e outros, pouco, por mais que “mereçam” isso.

E me parece que olhar para a política com os olhos de Cristo passa necessariamente por considerar quanto as propostas do meu candidato olham para o mundo assim. Justiça não é função apenas do Estado, claro, mas talvez o Estado seja o único recurso de dignidade de gente que não nasceu com as mesmas oportunidades que eu, que sou branco, heterossexual e de classe média — e, acima de tudo, seguidor de Jesus de Nazaré, aquele que me chama para olhar menos para os meus celeiros transbordantes e mais para o órfão e a viúva em suas necessidades.