Não, você não está enganado. O título deste texto é mesmo uma frase de “Onde Está”, da Fresno, uma das principais bandas brasileiras de emocore nos anos 2000. Nesta frase, há uma ambiguidade muito interessante: o compositor pode tanto ter dito que é impossível viver apenas sorrindo o tempo todo, quanto pode ter cantado que é impossível estar sozinho e sorrir.  

Sinceramente, não acho que precisaríamos escolher uma dessas duas interpretações, já que ambas são verdadeiras. Às vezes choramos, como todos já sabemos por experiências próprias. Também é verdade que o ser humano não é minimamente saudável quando vive sozinho — e é sobre esta segunda questão que quero refletir neste texto.

Gênesis 1.26-28 narra a criação do ser humano. Existem ótimas questões, que jorram da cabeça do leitor moderno, por exemplo, “Adão tinha umbigo?”. Entretanto, ainda mais importante que responder tal crucial indagação, é nos atentarmos ao “molde” segundo o qual fomos criados: “façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. (Gênesis 1.26).

De alguma forma, a natureza divina é compartilhada com a nossa própria  natureza — evidentemente, guardando as devidas proporções. O que Deus é e  como ele vive, de algum modo, se desdobra para aquilo que nós somos e para o  modo em que devemos viver. Logo, para entendermos o que somos e como  funcionamos, devemos olhar para Deus.  

Nesse exercício, desembocamos numa verdade extremamente rica.  Costumamos dizer que Deus é o Criador, o Governador Soberano etc. Tudo isso  está correto, evidentemente. Porém, o que Deus fazia antes de criar um mundo  para governá-lo? O que a narrativa bíblica nos ensina é que Deus amava: “Antes  mesmo de criar, antes mesmo de governar o mundo, antes de tudo mais, esse  Deus era o Pai que amava o Filho”. (Reeves, 2017, p. 27).  

Veja o quanto isso é profundo! Por toda eternidade o Deus Pai amou o Deus  Filho e dividiu com ele o Deus Espírito. Por toda a eternidade o Deus trino viveu em comunidade. Desde todo o sempre e para todo o sempre o único Deus,  existente em três pessoas distintas, vive em relacionamento compromissado,  generoso e plenamente satisfeito. A doutrina da trindade, ainda que  extremamente difícil, é muito importante porque, dentre outras coisas, ela nos  ensina que foi para esse padrão de relacionamento que fomos criados.  

Por que a Fresno acerta quando diz que é impossível viver sozinho e feliz?  Porque nós fomos criados segundo o padrão de um Deus que é  relacionamento, que é comunidade. Ainda que a música em si fale sobre um  relacionamento romântico, ela acerta quando afirma que a solidão não é um  estado natural ou saudável para pessoa alguma.  

Simplesmente não dá para sermos seres humanos plenamente se estivermos  alienados de Deus ou do próximo. É por essa razão que o Antigo Testamento e,  posteriormente, Jesus resumem toda a Lei, que é derivada da natureza do  próprio Deus, em dois grandes mandamentos: amarás o Senhor teu Deus acima  de todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo.  

Não é por menos que o próprio Cristo diz em João 13.35: “Com isso todos  saberão que vocês são meus discípulos: se vocês se amarem uns aos outros”. Se  a Igreja é uma comunidade de pessoas regeneradas pelo Senhor, capacitada  para viver como Ele vive, então somos um grupo heterogêneo que deve refletir  o amor divino, o relacionamento comunitário harmonioso presente  eternamente na santíssima trindade.  

Perceba que não há qualquer pré-requisito para a comunhão cristã. Não há a  necessidade de uma uniformidade entre os indivíduos, assim como o Pai, o  Filho e o Espírito não precisam ser os mesmos para que vivam em plena  unidade. Diferente das duas posições extremadas do mundo incrédulo —  uniformidade artificial ou segregação negligente —, a terceira via do evangelho  une o diverso, assim como em Deus há unidade na diversidade.  

Eu sei que essa realidade é extremamente desafiante para nós, pessoas  naturalmente egoístas. Via de regra, pensamos em nós mesmos antes de  pensarmos em qualquer outro. Inevitavelmente, participamos e ecoamos o mal  que assola o mundo. Todavia, como disse C.S. Lewis, o Filho de Deus veio ao mundo para disseminar nos outros homens o tipo de vida que ele tem — essa  vida em comunidade, com relacionamentos perfeitamente harmoniosos e  equilibrados, o que a Bíblia chama de “shalom”.  

Não é atoa que à mesa da Santa Ceia, onde Cristo celebrou o seu sacrifício e nos  uniu a ele, sentava-se um zelote (uma espécie de terrorista da época) junto com  um publicano (um judeu traidor do próprio povo). Dois inimigos mortais e  irreconciliáveis, aos olhos humanos, unidos em comunhão na mesa do Cristo,  que vive em comunhão plena e eterna.  

Em tempos polarizados, em dias tão egocêntricos, essa é uma verdade  importante de se lembrar: “é impossível viver só sorrindo”. Essa negativa  também aparece de forma positiva no texto bíblico: “como é bom e agradável  quando os irmãos convivem em união!”, diz o Salmo 133.1. E a razão disso,  segundo o versículo 3 é que “[nessa comunhão] o Senhor concede a bênção da  vida para sempre”. O Reino de Deus é um Reino de amigos e à mesa do Senhor,  na família de Deus, sempre cabe mais um. Cabe você também.

FONTEUltimato
Lucas Gonçalves
Bacharel em Comunicação Social e em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Plantação e Revitalização de Igrejas pela FATEV-CTPI. Estuda a ética e a moral cristãs em C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien, e é seminarista na Igreja Presbiteriana de Paulínia. Lucas faz parte do Coletivo Tangente.