Começou a aguardada 21ª edição do Big Brother Brasil, da TV Globo. O primeiro paredão já teve 1,5 bilhão de votos.
Isso é só uma pista do porquê os reality shows perduram hoje. Adaptabilidade e convergência da TV com outras mídias? Mobilização nas redes? Presença de celebridades? Investimento na produção? Isolamento social? Por que barraco dá IBOPE?
A categoria de reality TV cresceu exponencialmente no início dos anos 2000. Podemos dizer que essa tendência surgiu do desejo do público de se infiltrar na “rotina crua” das pessoas, com o mínimo de interferências possível – “ao vivo”.
Na verdade, o interesse participativo da audiência, que vota nos candidatos do jogo, por exemplo, é outro impulso que move um programa do tipo. O público se engaja porque se vê não como espectador, mas autor da trama que se desenrola entre os anônimos e famosos da competição.
Para o exímio romancista David Foster Wallace, a proliferação dos realities se deve à contemporânea “inibição da vergonha”. Ele diz:
“… mesmo que os espectadores estejam escarnecendo ou comentando sobre o mau gosto do show, eles ainda estão assistindo; e a chave é fazer as pessoas assistirem, pois é isso que traz lucro. Uma vez que perdemos esse embaraçar-se de vergonha, só o tempo dirá até onde podemos ir”.
Isso se aproxima do que o filósofo Byung Chul-Han fala do contraste entre “respeito” (olhar recíproco) e “espetáculo” (olhar como auto-satisfação).
O que, então, a cosmovisão cristã tem a dizer sobre os realities e seus recorrentes sucessos? E por que eles importam para a teologia pública?
Costumeiramente sob as críticas contra a vulgaridade e superficialidade, o BBB e outros programas do gênero acabaram escapando de interpretações mais lúcidas, que considerem suas dinâmicas e papéis na cultura – sejam eles positivos ou negativos. Sinceramente, entre os cristãos faltam reflexões sensíveis, aguçadas e coerentes sobre o mundo que um reality show propõe.
Diferente do que muita gente pensa, a narrativa bíblica tem traços para um diálogo crítico singular com esse tipo de entretenimento, erguendo questões que muitas vezes ficam soterradas debaixo do amontoado midiático que um programa do tipo provoca.
Análises da sociologia e estudos de ordem psicológica têm boas conclusões a respeito do alcance massivo dos reality shows, observando, por exemplo, como os participantes representam determinados grupos sociais, ou como se dá o apego de uma porção dos espectadores a um concorrente específico.
Em linhas gerais, a personalidade (digamos, história de vida/comportamento) e cada vez mais ideologias (como “masculinidade tóxica” vs. “feminismo”) – o que vimos proeminentemente na edição passada do BBB, potencializada pela polarização – são responsáveis por atrair o público ao elenco e dividi-lo entre suas “personagens”.
Em outras palavras, o espectador se identifica ativamente com quem supostamente se assimila ao seu próprio “jeito de ser” ou com quem expressa um estilo de vida que ele ou ela deseja. Ele também se engaja com um participante que corresponda às suas preferências ideológicas – “Diga-me o que você prioriza, e eu digo que brother você é”.
Por isso faz sentido pensarmos que além dos demais olhares sobre o fenômeno dos realities da TV, a visão de mundo cristã, orientada pela narrativa bíblica, tem a singular contribuição de perceber que tudo que acontece em torno de um reality show age sobre a camada mais decisiva de todo empreendimento cultural: a formação espiritual.
Ou seja: o BBB tem potencial para moldar hábitos do coração. E mais: eles entregam descaradamente as tendências que perseguem e se seguem dos compromissos últimos da sociedade. Como esse potencial se desdobra? É interessante pensar que uma dos mais chamativos produtos culturais do mundo pós-vergonha, a exposição pública, mexa tão agudamente com o coração das pessoas, suas aspirações mais particulares.
O professor de semiótica Marcel Danesi explica que o apelo desse gênero televisivo está em sua natureza “text-in-the-making”, ou “texto em construção”. E nós aqui, espectadores intra-narrativos, procuramos por modelos para viver o cotidiano não-artificial.
A teologia pode discernir virtude quando há comunidade mesmo em uma competição, e denunciá-la quando se torna uma maquete da queda, confinando intrigas, manipulação e traição.
Faz bem pra nossa teologia pública ser receptiva aos reality shows não por mérito cultural dos programas ou por conquistar relevância, mas por colaborar com um vocabulário distinto de outros. Afinal, teologia pública é sobre “falar alguma coisa”. Não exatamente falar o que é inédito, mas falar diferente do que todo mundo fala.
Para um evento tão expressivo da cultura pop, que concentra e distribui tendências, nada mais apropriado que a competência teológica pra lê-lo e respondê-lo.