Seu cônjuge anda apresentando algum desequilíbrio de humor frequente que tem afetado a rotina e o relacionamento familiar? Já oraram a respeito, buscaram conselhos de líderes religiosos, mas o problema parece insistir? Já pensou em recorrer ao auxílio de psicólogos mas receia ser tachado de “fraco na fé”? Pois bem, é este caminho que vamos trilhar hoje aqui. O uso de medicamentos para o tratamento de transtornos mentais ainda é tabu no meio cristão. O sujeito acometido por pressão alta ou diabetes vai ao médico em busca de tratamento medicamentoso sem receber julgamento algum, enquanto que a pessoa acometida por depressão ou ansiedade, caso recorra aos medicamentos, recebe logo um diagnóstico de falta de fé, pois para mal espiritual basta a oração. Não duvido da ação espiritual, de forma alguma. Para tal, precisaria negar a minha fé. Como cristã e conhecedora dos ensinamentos bíblicos, creio que haja sim influência espiritual para o bem e para o mal na vida dos seres humanos, mas também entendo que algumas enfermidades que estão relacionadas ao corpo (ou a carne, seguindo uma linguagem mais bíblica), ainda são – por ignorância – rotuladas de doenças espirituais. A depressão e a ansiedade são dois exemplos básicos. E por que afirmo que são enfermidades da carne e não do espírito? Bem, vou tentar explicar de forma didática para melhor compreensão.
O nosso sistema nervoso é formado pelas células nervosas, os famosos neurônios. O neurônio é uma célula altamente especializada na transmissão de informações, ali acontecem as famosas sinapses nervosas, que são os pontos onde as extremidades de neurônios vizinhos se encontram e o estímulo passa de um neurônio para o seguinte por meio dos neurotransmissores. Sei que a palavrinha é difícil, mas prometo trabalhar para que você compreenda. Os neurotransmissores são os “grandes carteiros” do cérebro, que passam mensagens, permitindo que haja comunicação dentro do cérebro e deste para o resto do corpo. Pra você ter umas ideia, existem cerca de sessenta “carteiros” já identificados, mas aqui vamos nos ater em apenas três deles: a noradrenalina, a dopamina e a serotonina. Sendo cada um deles responsável por um tipo de informação específica. A serotonina, dentre outros fatores, está relacionada ao humor, ao sono, ansiedade e depressão. A noradrenalina está envolvida em diversos aspectos como o humor, atenção, alerta, aprendizado, memória e excitação mental e física. Já a dopaminaé responsável por controlar o nível de estimulação no sistema motor e pelo estímulo prazeroso. A ingestão de alimentos, prática de sexo e algumas drogas são estimulantes da liberação de dopamina.
Se por algum motivo houver deficiência ou desequilíbrio na produção, entrega e recebimento dessas “cartinhas”, automaticamente observaremos alterações no comportamento do indivíduo. Se existe a dopamina deficiente, por exemplo, o sujeito pode sentir falta de sensação de bem-estar, de felicidade, prazer ou sentir-se distraído com muita facilidade. Pode também se sentir cansado, inquieto, agitado e irritável, ou pode não dormir bem durante a noite. A pouca concentração da serotonina pode causar a tristeza profunda e a depressão. A deficiência de noradrenalina resulta na falta de foco, energia e motivação. Já o excesso, pode ocasionar stress e ansiedade.
Mas é importante deixar claro que sentimentos de tristeza, desânimo, estresse ou ansiedade estão dentro do esperado quando relacionados a conflitos pontuais como o luto, a separação ou a perda de um emprego, por exemplo. Ou seja, se uma pessoa muito próxima falecer, é normal e aceitável que você passe por tristeza profunda durante algumas semanas. Não precisa correr para o psicólogo (rs). Há também que se descartar a possibilidade de algum problema de saúde. O hipertiroidismo, a hipoglicemia e tumores em algumas glândulas podem desencadear alguns transtornos de humor. Uma passagem pelo clínico geral pode te ajudar a descartar todas essas possibilidades.
E se o transtorno de humor não estiver relacionado a um acontecimento pontual e minha saúde estiver em ordem? Quando devo me preocupar e procurar um especialista ou uso de medicamentos?
Quando o transtorno e alterações de humor passam a prejudicar seus relacionamentos, o sono e interferir na sua rotina. Como disse a pouco, existem as alteração de humor desencadeadas por episódios específicos como o luto, mas que depois de um tempo se regularizam. Esta seria a alteração de humor aceitável e normal. Agora existem as desencadeadas por episódios, mas que se estabelecem e permanecem e também os quadros crônicos e repetitivos. Estes precisam do auxílio de profissionais especializados e quanto mais precoce o início do tratamento, melhor a resposta e possibilidade de cura. Quanto mais demorado, maior a chance do transtorno se tornar crônico.
O profissional que possui capacidade e autorização para prescrever medicamentos em casos de transtornos de humor é o psiquiatra, que deve trabalhar em parceria com o psicólogo. Este atuará em conjunto com o paciente para encontrar a raiz do problema e os caminhos possíveis para o equilíbrio. Vou fazer uma analogia para melhor entendimento. Imagine que você sofra de uma dor de cabeça intensa ocasionada por problemas na vista. Um neurologista pode prescrever um medicamento para aliviar os sintomas, mas apenas o oftalmologista poderá encontrar a raiz do problema e oferecer caminhos para a solução, neste caso, o óculos.
Sua esposa pode, por exemplo, estar com um desequilíbrio na produção de serotonina e o psiquiatra certamente estará preparado para identificar o medicamento e dose ideal para a regularização desse neurotransmissor. Mas se o gerador do problema for o ambiente opressor no serviço, o desequilíbrio na produção e transmissão dos neurotransmissores continuará ocorrendo caso o problema no serviço não seja solucionado. Por isso a necessidade do trabalho em conjunto entre psiquiatra e psicólogo, onde um atua no equilíbrio dos processos químicos (através de medicamentos) e o outro no equilíbrio dos relacionamentos, rotina e comportamentos (através da psicoterapia).
Esses profissionais também te ajudarão a identificar se o transtorno de humor é considerado leve, moderado ou grave. Se o transtorno de humor é leve, provavelmente o paciente deverá passar apenas por psicoterapia. Agora se o transtorno é considerado moderado ou grave, precisará de psicoterapia associada ao uso de medicamentos. O medicamento tem a função de estabilizar os processos químicos do indivíduo para que ele possa partir para a psicoterapia. É um trabalho em conjunto. Lembrando que o efeito das drogas no organismo costumam levar de quatro a cinco semanas para começar a apresentar algum efeito na melhora do caso clínico e o processo de “desmame” precisa ser lento e gradual (de um a dois anos). Em alguns casos o uso será continuo até o final da vida, assim como no caso do paciente que sofre de diabetes ou pressão alta.
O medicamento atua especificamente nesse processo de equilíbrio e regularização na produção e transmissão dos neurotransmissores (dos carteiros e suas cartinhas), ou seja, atua nas células nervosas que são tão carnais quanto o pulmão ou o pâncreas. Por isso, na minha visão, não vejo falta de fé alguma no ato de buscar auxílio com um especialista em transtornos mentais, assim como não vejo problema no sujeito que busca ajuda com um cardiologista e sai de lá com um diagnóstico de doença crônica e prescrição de medicação para o resto da vida. Faz parte do mundo em que vivemos, simples assim.
E agora eu pergunto: ciente de que quanto mais precoce o início do tratamento melhor a resposta e possibilidade de cura e quanto mais demorado, maior a chance do transtorno se tornar crônico, não seria insensatez prorrogar a visita a um especialista?
Por isso, como cristã e estudante de psicologia, recomendo sem medo de ir para o inferno:
Se você ou algum familiar passa por algum transtorno de humor que tem afetado a rotina, relacionamentos ou sono, ore a Deus sim, ele pode te curar sem o uso de medicamentos. Mas seja prudente e procure também um especialista, afinal, se você partilha da fé cristã, deve andar na certeza de que foi Deus quem deu inteligência e capacidade ao homem para descobrir algo tão fantástico como as sinapses e produção de neurotransmissores, assim como a descoberta dos medicamentos que recuperam seu equilíbrio e trazem melhor qualidade de vida ao ser humano. E isso me parece tão maravilhoso quanto a cura milagrosa e imediata que Deus pode operar!
*Artigo construído com base na palestra oferecida pelo professor e doutor Ricardo Borges Machado, em 11.10.2016 na II Jornada da Psicologia na Universidade Ibirapuera. Ricardo é graduado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de Goiás, com habilitação em Análises Clinicas. Mestre e Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pós-Doutorado pela UNIFESP e professor Adjunto Substituto da UNIFESP para a Disciplina de Psicofarmacologia. Pesquisador dos mecanismos neuroendocrinológicos e neuroquímicos das repostas ao estresse e da regulação do sono.