Amigos, nos anos 90 tive uma livraria evangélica. Foi um tempo muito interessante, que de certa maneira modificaria minha vida para sempre. Muitas reflexões, novos horizontes abertos, tempo de aprender coisas novas, especialmente a convivência com irmãos e irmãs preciosos que tinham outra história na sua caminhada de fé. Descobri, para meu espanto, que havia vida fora dos meus arraiais. Foi, a meu juízo, a época mais marcante na minha vida com Deus até hoje. Hora de firmar meus próprios conceitos e valores, de investigar o que cria e as razões porque cria. Para confirmar algumas teses e para rejeitar outras. Para encontrar algumas respostas e para fazer um monte de outras perguntas. Algumas até hoje sem resposta, diga-se de passagem.
O mercado literário evangélico começava finalmente a desabrochar, com muitos autores brasileiros e uma leva nova de estrangeiros sendo traduzida para o português. Como tudo na vida, saía muita coisa boa e veio junto muita porcaria também. Foi, por exemplo, o auge da teologia da prosperidade. Vieram os dentes de ouro, o cair no Espírito e diversas outras maluquices. Cheguei a ver em Rio Claro, onde morava na época, espetáculos de hipnose gospel. Tudo, é claro, super em nome de Jesus.
Aquela década foi pródiga na produção de uma geração a que costumava chamar de “crentes de congresso”. Nada de compromisso com ninguém. Começou ali o questionamento sobre a necessidade de se manter vínculo formal com uma comunidade especifica. Houve, por isso, uma proliferação de eventos evangélicos, alguns de proporção gigantesca, que serviam a todos os gostos e tendências teológicas. Para cada assunto, um Encontro. Para cada tema, um Congresso. Para cada preferência, uma revista. E assim foram se multiplicando seminários para homens, para líderes, para mulheres, workshops de louvor e adoração, dança, pintura e sapateado, congressos de Ação Social, de Missão Integral, triangular, quadrangular, quadrada e redonda. Tinha de tudo para todos. Nunca se vendeu tanto livro, tanto VHS (só depois viriam os DVDs). Houve um verdadeiro boom de novas editoras e uma corrida quase desenfreada das existentes na busca de fenômenos de venda. Autores até então desconhecidos viraram celebridades. Passaram a escrever por encomenda. Uma loucura. Bíblias de estudo, então, foi uma festa. Só faltou a Bíblia do Corintiano. As outras, tinha.
Foi quando a mídia eletrônica começava a despontar e assistimos à formação de líderes exóticos, outros mais bem apessoados, intelectuais, com um discurso revolucionário, mas filosófico, tentando apontar caminhos e soluções para males antigos e encalacrados no seio da igreja brasileira. A Internet engatinhava por aqui, mas a TV e as rádios comunitárias viravam febre. Com todo esse arsenal, sem comparação com a atual, foi possível notar a erupção de líderes e tendências nacionais, que gostavam de falar em nome dos “evangélicos”. Nada muito original, porque sempre acabamos virando sucursal de antigas teses revisitadas com roupagem verde-e-amarela. Alguns desses líderes caíram, outros desistiram e outros começaram a inventar respostas para as perguntas que eles mesmos tinham feito.
Deixei o ramo no ano 2000. Fiquei uma década meio afastado desse burburinho. Acompanhei à distância algumas novas barbaridades e delírios. Parece que a década passada foi mais afeita a unções e apostolados. E agora, no início da nova, a moda são os teólogos de blogs, vlogs e Twitter. Surgiram novos nomes, novas “bolas-da-vez”. Os tsunamis e terremotos abalaram mais do que a crosta terrestre. Abalaram a fé de alguns, que andam lendo mais Niestzche, Sócrates e Platão do que a Bíblia. A onda do momento entre os intelectualoides de plantão é flertar com repisadas heresias, bem antigas e empoeiradas por sinal, mas para quem come pela mão dos outros, uma grande novidade: agora, Deus não é mais onisciente, ele não pode tudo, ele está limitado a isso ou aquilo. O Evangelho da Bíblia não serve mais do jeito que está. Foi reduzido a algo como “tradição judaico-cristã”. O Cristianismo é uma religião como qualquer outra, que apenas se arvora num livro supostamente autoritativo, mas que, convenhamos, não pode ser assim tão absolutista, porque isso não combina com a mente do homem pós-moderno. Nada de coisas muito definitivas. Cada um pode ter a sua teologia, já que a verdade é relativa.
Acima de tudo, há um verdadeiro fascínio na pregação atual pelo “outro”. É “outro evangelho”, “outra teologia”, “outra espiritualidade”, “outro Deus”, “outra leitura das Escrituras”. Agora é lindo colocar em dúvida o que Deus falou. Essa é a moda atual. Vamos questionar. Vamos começar de novo. Tudo está errado. É tudo interpretação puritana. Bem, não é de hoje que se faz isso. Aliás, o primeiro teólogo que veio com essa conversa de “é assim que Deus disse?” foi a serpente no jardim do Éden. Pode parecer muito descolado, intelectual, articulado e moderno. Mas é tão antigo quanto o diabo, porque na verdade tem a mesma origem.
Pode parecer incrível, mas não é surpreendente, uma vez que já tínhamos sido avisados por Paulo, é que essas teorias cheias de discussões que saem do nada e chegam a lugar nenhum, tentando explicar o inexplicável, colocar fim ao problema do mal, reduzir a um tubo de ensaio a preexistência de Deus, sempre encontrariam espaço. Foi a respeito de supostos mestres como esses que Paulo alertou a Timóteo na sua primeira carta. Chamou a atenção a seu filho na fé para não perder tempo com discussões insensatas, que se baseavam (preste bem atenção no termo) em OUTRA DOUTRINA, ocupando-se de “fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço de Deus na fé.” (1 Tm 1:3-4). Esses homens do tempo de Paulo, à semelhança dos atuais, sempre encontram ouvidos dispostos a considerá-los. Não lhes faltam ouvintes nem seguidores. (2 Tm 4:3). O que lhes falta não é plateia, mas assunto e simplicidade bíblica. Falta-lhes a coragem de dizer, como Jó, ao final da sua saga de busca e sofrimento: “Na verdade, eu falei de coisas que não entendia, coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia” (Jó 42:3). Porque muito pior do que não conseguir explicar é querer falar daquilo que não sabe.
Não os inveje. É preferível ser uma voz que clama no deserto, mas com uma mensagem que venha da parte de Deus, do que uma multidão de gente a lhe aplaudir enquanto os diverte com filosofias humanistas que vieram e que voltarão para o fundo do inferno.
Pouco se me dá se você acha meu discurso pouco elaborado, pouco intelectual ou abaixo da crítica. Quem não concorda com eles é “fundamentalista”. Quem crê no Evangelho da Bíblia, agora está crendo em “teologia norte-americana”. Rotule à vontade.
Prefiro crer na verdade, ainda que com muitas dúvidas, do que, cheio de convicções, acreditar na mentira.