Amigos, quando começamos nossa vida acadêmica, recebemos aulas da Dona Clotilde sobre o alfabeto. A, B, C, D, E, F e assim por diante. Não preciso lembrá-los desses dias. Já se vão há muito longe em nossa memória. De muita serventia serão estas letras. Uma delas é para que a gente aprenda a consultar dicionários. Esta é uma prática pedagógica extremamente interessante. Muito boa a idéia do cidadão que agrupou as palavras em ordem alfabética.
Existem atualmente dicionários específicos para cada área. Tem dicionário de moda, de etiqueta, de idiomas, de culinária, de informática e até de “piracicabanês”.
Há tempos que venho percebendo uma tendência que temos de estigmatizar alguns dos erros mais gritantes da humanidade. É como se estivéssemos criando o Dicionário do Mal. Ao nosso bel-prazer, selecionamos alguns pecados para tratá-los como tais. Nós até os agrupamos por ordem alfabética, com o cuidado de deixar de fora os pecados da estação, os pecados da moda. Funciona mais ou menos assim:
A
Adultério: pecado gravíssimo, trata-se com exclusão da comuhão da igreja.
B
Bebedeira: entenda-se toda e qualquer dose de bebida alcoólica, não importa se usada com ou sem temperança. Crente não bebe. Pronto, acabou. Pecado grave. Pode ser viciado em chá preto, em coca-cola, em café. Mas nada de álcool.
C
Cinema: já foi pecado no passado, hoje não é mais, até porque todo mundo já o tem dentro de casa. Por tratar-se de uma batalha perdida, deixou de ser pecado. Já não é sequer necessário selecionar o tipo de filme. Vale tudo.
Calça comprida: já fez parte dessa lista; hoje ainda há aqueles que proíbem seu uso nos cultos (porque deve haver algum registro sacro sobre a indumentária correta para estes ajuntamentos), mas a maioria das pessoas do século 21 já não entende mais porque essa discussão já teve lugar em algum momento.
D
Desonestidade: não pode em alguns casos, mas em outros é de se pensar. Exemplo: não pode levar pacote de bolacha do supermercado sem pagar, mas pode vender o carro com o motor fundido, sem falar nada para o comprador. Afinal, é obrigação dele ver o que está comprando.
Divórcio: Não pode, não pode, não pode. Inclusive se você era descrente quando cometeu este pecado, você ficará marcado para sempre como um crente de “segunda linha”. Sugere-se perguntar ao descrente qual é o seu estado civil antes de começar a evangelizá-lo.
E
Eutanásia: Não pode; é assassinato e só Deus pode tirar a vida. Mas odiar alguém pode. Exemplo: “Fulano de tal morreu para mim”. Isto está liberado.
F
Fornicação: Pecado gravíssimo, trata-se como o Adultério.
Fofoca: embora comece com as mesmas letras do verbete anterior, não foi ainda julgada digna de figurar neste dicionário.
G
Ganância: é pecado, mas é muito difícil de identificar. Então é melhor não mexer com isso. Entra muito na intimidade das pessoas.
Gula: Pecado grave, mas só se for ligada à bebedeira ou no máximo se aplicada à sexualidade. Comer descontroladamente comida mesmo, isso não é pecado. E temos dito.
I
Idolatria: pecado gravíssimo, um dos piores descritos na Bíblia. Chamamos de idolatria o ajoelhar-se diante de estátuas ou deuses feitos por mãos humanas. Os deuses do coração, porém, aqueles que todos criam e se amarram a eles (por exemplo: bens materiais, maridos, esposas, filhos, times de futebol etc) estão liberados.
Inveja: Pecado grave, porém só deve ser entendida como tal no ambiente do “mundo”, com por exemplo, invejar o colega de trabalho que foi promovido, o vizinho que trocou de carro de novo. Invejar o ministério ou o dom alheio não é pecado, é somente admiração e respeito.
J
Jugo Desigual: era pecado há alguns anos, notadamente nos negócios. No casamento já deixou de ser, uma vez que no namoro já pode. Não precisa mais ser tratado pela igreja, porque não é politicamente correto exigir isso, especialmente se os envolvidos forem filhos de dizimistas fiéis.
L
Língua Suja: pecado grave, se for cometido na frente dos outros. No trânsito, no campo de futebol, no telefone, quando ninguém está olhando, chamar esta prática de “pecado” pode ser considerado um exagero.
M
Maledicência: não é mais pecado. Tanto que nunca se viu uma pessoa excluída ou afastada de uma igreja por causa disso. Prática aceitável, devido aos seus resultados tão doces.
Mentira: Pecado grave, no caso de ser feito contra os pais. Se for nos negócios, é aceitável. A “mentira comercial” é necessária, senão a gente tem que virar missionário ou pastor. Mandar dizer que não está não é pecado. É necessidade de remir o tempo.
P
Parcialidade: Só é pecado se for na igreja do vizinho. Na nossa igreja, ou no chamado “nosso meio” isso jamais aconteceria. Sempre que publicamos ou damos vazão a uma informação, seja ela verdadeira ou mentirosa, damos espaço ao outro lado para se defender e colocar a sua versão.
R
Roubo: É pecado. Justifica até matar o bandido por causa disso. Bem entendido, roubo é quando alguém tira alguma coisa que pertence a outrem. Não se aplica ao comerciante que cobra 3 vezes o que vale uma mercadoria porque ele tem o monopólio do mercado. Não se aplica ao que cobra 10% de juros ao mês de um dinheiro emprestado. Não se aplica ao que continua recebendo a pensão do INSS depois que o segurado morreu. Não se aplica a colocar o carro no seguro 2 dias depois do acidente.
U
Usura: Não é mais pecado. Atualmente é apenas uma lei de mercado. O capital precisa ser remunerado, mesmo que o seja à custa do suor e trabalho de 98% dos outros que não têm capital.
E assim vai. Em todas as épocas da história da igreja isso aconteceu. Cada época teve seus pecados acrisolados, aqueles que eram socialmente aceitáveis e religiosamente acobertados. Por exemplo, um dia desses, li sobre a vida do famosíssimo John Newton. Ele foi o autor do clássico hino evangélico “Amazing Grace”, ou “Sublime Graça”, como o cantamos em português. Eu sempre achei que ele se considerava um miserável e indigno da graça de Deus porque tinha sido traficante de escravos. Ele ia com seus navios para a África, entrava pelos rios e ia prendendo gente para vender na Europa. Este relato foi feito por ele mesmo, em sua autobiografia. Mas não é por isso que ele se auto-intitulou um “wretch” (miserável). A razão, segundo ele, era que nessas longas viagens ele, que tinha sido instruído no Evangelho por sua mãe, falava muitos palavrões e participava de bebedeiras, inclusive levando outros a seguirem o seu mau comportamento. Não que isso seja uma coisa aceitável ou da qual alguém não deva se envergonhar. Mas não é impressionante que ele nunca tenha achado estranho, errado, desumano ou anti-cristão subjugar os povos africanos, aprisionar famílias inteiras, separando filhos de seus pais para sempre, somente para depois vendê-los como mercadoria na Europa “puritana” e “cristã” da sua época? Ah sim. É que tem pecado que pode e tem pecado que não pode.
Muito mais recentemente, havia discriminação oficial nos Estados Unidos. Os negros eram tratados como animais, tinham que esperar o trêm em salas separadas, não podiam votar e tudo o mais que se sabe. É verdade que foi um pastor batista, o Martin Luther King Jr, que iniciou e pagou com sua vida um grande movimento para reverter essa situação. Mas em geral, a igreja cristã nunca achou errado o que se passava. O mesmo se passou na África do Sul. País de maioria negra, o apartheid comeu solto até 15 anos atrás. E sabe o quê? Muitas igrejas protestantes históricas defendiam o apartheid com sua “teologia” reformada. Tinha gente que dizia até que o sinal de Caim era ser negro e que então os negros eram malditos mesmo e que era correto segregá-los e tratá-los daquela forma. E assim se manteve, com a conivência da igreja, aquele estado de pecado e afronta contra os seres humanos que tinham outra cor de pele. Ah! sim, é que tem pecado que pode e tem pecado que não pode.
Durante a ditadura militar, muitas foram as mensagens “cristãs” a favor do governo. O medo, possivelmente justificado, de que o comunismo chegasse ao poder fez com que muitos púlpitos servissem como verdadeiros palanques militares. Saiu a ditadura militar de 21 anos, entrou a ditadura de 8 anos do neo-liberalismo. Ainda assim houve entre as fileiras evangélicas aqueles que se sentiam seguros, porque ganharam e continuam ganhando muito dinheiro com o estado de coisas que oprimiu o povo e esfolou as finanças da classe média e baixa. Teve muito cristão que ganhou dinheiro no tempo dos militares porque se aproveitou de negócios escusos, de financiamentos subsidiados, de concorrências fajutas. O curioso é que os mesmos que nos ensinaram a orar pelo governo (militar) e que diziam ser pecado falar mal do governo (FHC) agora oram e falam contra o governo (Lula). Parece que agora o governo não é mais governo. Parece que agora podemos fazer o que não podíamos fazer em outras épocas. Ah, sim. Tem pecado que pode, tem pecado que não pode.
Essas reflexões me vêm à mente porque tenho ficado cada vez mais admirado com a atuação dos profetas no Velho Testamento. Eles não foram levantados para dourar a pílula nem para serem agradáveis ou politicamente corretos. Eles foram chamados por Deus para dizer ao povo o que Deus abominava e o que Deus amava. Não se preocupavam com o IBOPE nem com sua imagem pessoal. Chegavam e davam o recado. Mesmo que isso desagradasse os poderosos, os influentes ou os formadores de opinião do povo.
Talvez seja por isso que Paulo disse aos Coríntios que o dom da profecia era o mais nobre. Ainda precisamos dele.