Em terra de cego…

Amigos, era uma vez uma terra de cegos. Todos andavam tateando. Cães-guias eram uma sensação e as fábricas de bengalas não venciam a demanda. A Cegolândia era um lugar diferente. Dentro de suas limitações, todos os habitantes eram felizes. Cegolândia ficava no alto de uma colina, praticamente isolada do mundo. Pouca gente de fora visitava aquele lugar. De vez em quando, seus moradores desciam a colina para comprar alguma coisa nas aldeias vizinhas e voltavam arrepiados das coisas que viam, ou melhor, que ouviam ali.

Devia ser muito difícil para as pequenas crinças que nunca tinham visto a cor de uma rosa, nem o verde dos campos nem o azul do mar. Também não conheciam o rosto de suas mães. Mesmo assim, podiam acariciá-las e sentir seu cheiro.

Com muita dificuldade, eles conseguiam plantar e colher alguma coisa, mas o cardápio não variava muito. Podiam criar seus animais, mas nada que fosse além de frango e algumas cabras. Assim se tocava a vida.

Seus governadores eram iguais a eles. Não podia haver supervisores naquela terra. Isso porque alguém lhes ensinou que um supervisor é alguém que tem uma SUPER-VISÃO, e lamentavelmente não era o caso de nenhum deles. Ninguém tinha sequer visão.

Isto começou a se tornar um problema. Quando surgia uma dificuldade, todos reuniam-se para discutir as soluções. Tudo se decidia na base do que cada um achava. Ninguém podia dar uma opinião mais abalizada e, por razões óbvias, jamais alguém podia dizer que já tinha visto um caso assim.

Até que algo inusitado aconteceu. Dois jovens recém-casados perceberam que iam ter um filho. Foi uma alegria grande naquela família. Mas eles mal podiam esperar o que estava por vir.

Quando o bebê nasceu, a parteira da aldeia vizinha (que prestava serviço às mulheres de Cegolândia) percebeu algo completamente diferente em seus olhos. Ele parecia ter um brilho que nenhum bebê jamais mostrara. Seria impressão dela ou a criança realmente podia enxergar?

Ela voltou para casa apreensiva, sem dizer uma palavra com ninguém na cidade, para evitar causar tumulto. Comentou o caso com uma colega parteira e ambas voltaram no outro dia. Fizeram alguns testes rudimentares e constataram um verdadeiro milagre: o menino não era cego.

A notícia se espalhou como fogo na palha. Em breve, toda a Cegolândia se reuniu em frente à casa dos pais da criança. Queriam ver o menino de todo jeito. Mas como isso não lhes era possível, restou-lhes apalpar o rosto da criança, questionar as parteiras, inquirir os pais. As perguntas eram as mais variadas.

A sogra do rapaz comentava, à boca pequena: “Eu nunca confiei muito nesse moço. Isso é uma vergonha para a nossa família”. A mãe da moça não quis sair à rua por um tempo, até que as coisas acalmassem. O dono da padaria disse: “Vamos ver até quando isso vai durar”. Depois, caindo em si, lembrou que não daria para eles verem, mesmo que isso tudo durasse até o fim de suas vidas. O juiz da cidade disse que, se até a justiça era cega, ele não achava justo que aquilo estivesse acontecendo com eles.

Até alguns religiosos apareceram para conferir. Um diácono, por nome Tomé, disse em alto e bom som: “Só acredito vendo”. O pastor de uma tradicional igreja evangélica em Cegolândia, pregou um sermão no domingo seguinte, sob o tema: “O pior cego é aquele que quer ver”. Outro, presbítero de uma igreja independente, perguntava entre seus pares: “Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse vendo?”

A polêmica estava no ar. “Que há de vir a ser este menino?” era a pergunta do momento. Até que lá pelas tantas, alguém sugeriu:

“Ele poderia ser o nosso rei. Ouvi alguém dizer lá no vale que `em terra de cego, quem tem um olho é rei`. Então, ele poderia nos ajudar muito, principalmente quando chegar a hora de escolher a nova frota dos cães-guias.”

“Hmmm, não sei não”, respondeu um dos principais dos concegueiros, quer dizer, conselheiros. “Isto não vai dar certo. Até hoje, nunca tivemos alguém que enxergasse entre nós e sempre nos demos bem”.

“É, nem sempre, né? Lembra da história de construir o campinho de futebol na beira do barranco?”

“Pior foi quando compramos aquele pó de café que…”

“Calem-se!”, interrompeu irritado um outro senhor ajeitando os óculos escuros. “Vocês são jovens demais para dar palpite sobre isso. Vocês ainda não viram nada sobre a vida”.

“É, seu Diótrefes, mas o senhor também nunca viu nada”.

“Não vi, mas vivi. Eu sei o que estou falando. Isso não vai dar certo. Nunca deu certo, não é agora que vai dar. Nunca precisamos disso. E tem mais: isso acabaria completamente com a nossa identidade. O que as pessoas vão dizer se souberem que temos um rei que enxerga?”

“Mas, seu Diótrefes…”

“Não tem mas, não tem menos; nem más ou menos. Eu já decidi.”

“Decidiu o quê?”

“Vamos furar os olhos dele e assim seremos todos iguais”.