Amigos, tendo feito o preâmbulo nos artigos anteriores, resta analisar algumas cenas e situações do filme em questão.
Como dito anteriormente, alguma margem para imaginação pode ser dada com certa segurança. Como exemplo, citaria as cenas (todas obviamente fictícias) de Jesus na carpintaria ou como uma criança caindo na rua. Exceto o diálogo sobre o design da mesa, são situações que bem poderiam ter ocorrido. Se não ocorreram, pelo menos elas não alteram os fatos da história nem estabelecem nem corroboram qualquer tipo de doutrina errada a respeito do Senhor.
Outras são tão fantasiosas como altamente improváveis e deveriam ter ficado de fora. É o caso do pássaro que come o olho do ladrão blasfemo. Não ajudou em nada, fez um acréscimo estúpido ao roteiro e desviou o foco do público em momento crucial (literalmente) do filme.
Pior de tudo, são as cenas e ilações frontalmente contrárias ao relato e ao ensino da Bíblia.
As circunstâncias da negação de Pedro são um exemplo disso. Os Evangelhos afirmam que Pedro estava “assentado em volta de uma fogueira” quando foi reconhecido (Lc 24:64-62). Embora este risco fosse implícito, em momento algum qualquer evangelista registra uma tentativa de prendê-lo. Do jeito que está no filme, fica óbvio o desejo dos produtores de “limpar a barra” de “São Pedro”. É como um advogado defendendo seu cliente, que comete um crime em “legítima defesa”. Ou seja, a negação de Pedro é passada como um ato justificável dentro do contexto. Erro grave e inaceitável para aqueles que defendem a coerência e a autoridade das Escrituras.
Outra questão. Não temos dúvidas, como cristãos, do papel de Maria como o instrumento escolhido por Deus para trazer ao mundo o Salvador. Ela foi agraciada, foi bendita entre as mulheres e de seu ventre saiu o Bendito Fruto, Jesus. Não precisamos ter medo destas verdades. Mesmo porque Maria não tem culpa do que fizeram dela séculos depois da sua morte.
Porém, em momento algum dos Evangelhos, vemos qualquer pessoa chamando-a de “Mãe” (assim mesmo, com letra maiúscula). Muito menos encontraríamos Pedro ajoelhando-se aos seus pés a lhe dizer: “Afaste-se de mim, não sou digno”. Estas palavras foram ditas por Pedro, sim, mas não naquele momento e não para Maria. Foram ditas ao próprio Senhor Jesus, muito tempo antes, em um contexto completamente diferente.
Há outras sugestões veladas, mais perigosas do que esta. Aos pés da cruz ela diz ao Senhor (no filme, não nos Evangelhos): “Eu morreria por você”. Ora, esta é uma insinuação da maior gravidade. Deixa nas entrelinhas a possibilidade de que Maria poderia morrer em lugar de Jesus. Neste caso, quem seria o Salvador do mundo? Isto faz coro com a sua fé cristã? Não incomoda àqueles que crêem em “UM SÓ MEDIADOR ENTRE DEUS E OS HOMENS, CRISTO JESUS, HOMEM”?
Na cena da Via Dolorosa, quando Jesus vai carregando a sua cruz e de um lado da rua, por entre a multidão aparece a figura sorrateira e sinistra do diabo e do outro a figura piedosa de Maria. Qual é a sugestão? Qual é a intenção? Mostrar que há naquele instante um conflito entre Maria e o diabo? Na Bíblia, este conflito não existe. O que existe é um conflito entre Cristo e o diabo com seus anjos. E Paulo afirma, inspirado, ele, sim, pelo Espírito Santo, que Jesus Cristo “os expôs todos ao desprezo, triunfando deles na cruz”.
Conclui-se que o filme não é isento. É um filme para ser vendido e um filme com vícios de interpretação seríssimos, que fariam qualquer reformador levantar-se e bradar “SOLA SCRIPTURA”(*). Quem disser que o filme é bíblico, ou não assistiu ao filme ou não conhece a Bíblia. É um filme “acerca” de fatos bíblicos (aliás, do fato mais relevante da Bíblia). Nada além disso.
Repito o que disse no artigo anterior: não entendo a razão de tanta empolgação. Recebi e-mails contando “milagres” que aconteceram nos bastidores das filmagens, atribuindo ao Espírito Santo a inspiração para a produção do filme, falando da participação de atores cristãos e não sei mais o que. Nada disso conta. Nem questiono a veracidade ou a ocorrência destes fatos. O que conta é a maneira como a história é apresentada. Falsa em alguns momentos, exagerada em outros e fiel em alguns pontos. Isso, como já argumentado, torna a celeuma ainda mais conturbada. Os menos avisados ficarão emocionados, os mais empolgados ficarão deslumbrados e fica nisso.
Resta ao povo de Deus, que foi transformado e comprado pela obra da Cruz, saber separar a emoção da análise bíblica, a empolgação do senso crítico e trocar a ingenuidade pelo discernimento.
Certamente surgirão tremendas oportunidades para se falar da verdadeira obra da Cruz. Soube de igrejas em São Paulo e Campinas que fecharam salas de cinemas e levaram centenas de pessoas para ver o filme. Uma delas entregava ao final um cartãozinho dizendo algo como: “A história que você acabou de assistir é falsa. Se quiser saber mais sobre a história verdadeira, procure-nos neste endereço” e ofereciam assistência através de cursos bíblicos. Aqui em Piracicaba, é possível ser abordado por pessoas com panfletos na mesma linha à saída do shopping onde ficam os maiores cinemas da cidade.
Acho que tem que ser por aí mesmo. Aproveitar a chance e transformar este momento em um potencial para falar ao povo que a história da Paixão de Cristo não é um espetáculo de entretenimento para as multidões, mas é a mensagem de poder para a salvação de todo aquele que crê.
A Paixão de Cristo I
A Paixão de Cristo II
Pensando bem:
(*) SOLA SCRIPTURA, expressão latina de fácil compreensão para quem fala português (Somente a Escritura), foi o lema da reforma protestante, que reivindicava a autoridade da Bíblia acima de qualquer tradição ou convenção humana, ainda que com autoridade religiosa.