Amigos, permitam-me promover uma reflexão um pouco mais profunda e até quanto for possível, isenta de paixões político-partidárias, ideológicas, filosóficas ou morais, sobre o sentido mais amplo de uma expressão que se tornou bastante popular nas últimas semanas, notadamente em alguns círculos “evangélicos”: a iniquidade. Porque da noite para o dia, iniquidade virou sinônimo perfeito de aborto e casamento homossexual. Circunscrevemos a estes pecados, verdadeiramente abomináveis mas não exclusivamente abomináveis, a pecha de iníquos. Jeitosamente, deixamos fora da lista outras ações, políticas e posturas. Faço desta coluna uma resposta às dezenas de pessoas que por qualquer motivo (os quais não tentarei imaginar, posto que fazê-lo seria incorrer em julgamento temerário) entupiram minha caixa postal com vídeos que classificaram como “esclarecedores”, “muito bons”, “que merecem ser divulgados”, “equilibrados”, entre outros.
Por definição, “iniquidade” quer dizer falta de equidade; injustiça; aquilo que não é direito; perversidade. É, portanto, o contrário de equidade, de retidão, de justeza, daquilo que é correto. Ao analisar o uso desta palavra e, mais ainda, o conceito que ela assume nas Sagradas Escrituras, vamos perceber que há muita coisa rolando em nosso país, algumas delas contando até mesmo com a conivência dos mesmos que agora posam de paladinos da moral e da ética, que necessariamente precisariam estar na mesma lista. Estranhamente, esses pastores, agora tão preocupados em ser uma voz “profética”, silenciaram durante décadas a propósito de tantas outras iniquidades.
Citemos alguns exemplos.
A injustiça social é uma iniquidade. Ela se manifesta na perversa distribuição de renda, levando a uma concentração absurda nas mãos de uma minoria. A Bíblia não é contra a propriedade e a iniciativa privada, mas Deus sempre se posicionou contra um povo que deixa seu compatriota passando fome, enquanto se esbalda em seus banquetes. A injustiça também está expressa, por exemplo, num sistema de exclusão escolar, no qual o filho do pobre é obrigado a ir a uma escola com professores mal pagos e despreparados para encontrar aos 18 anos o filho do rico, que estudou nas caríssimas particulares e ter que disputar através de um vestibular o acesso às melhores universidades. Não é demais lembrar que no Estado de São Paulo, onde nasci e me criei, os últimos 20 anos assistiram a um sucateamento orquestrado do ensino público, enquanto, no mesmo período, surgiram verdadeiras indústrias do ensino privado. A relação entre uma coisa e outra é criminosa, porque cria uma distorção na maioria dos casos irreversível. Isto é uma enorme e indisfarçável iniquidade. No entanto, nunca ouvi um pastor gravar vídeo para falar contra isso.
As leis injustas são uma iniquidade. Disse Deus através de Isaías: Ai daqueles que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores, para privar os pobres dos seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo das viúvas sua presa e roubando dos órfãos! (Isaías 10:1,2). Observe que ele não está falando sobre leis contra aborto, liberação de drogas nem de união de homossexuais. Ele está falando sobre leis que, no caso brasileiro, incluem a previdência social, o menor carente ou o acesso do pobre ao sistema judiciário. Quando será que vai sair o próximo vídeo falando contra isso?
A justiça parcial é uma iniquidade. Deus deixou claro através de Moisés: “Não torcerás o juízo; não farás acepção de pessoas, nem receberás suborno; porque o suborno cega os olhos dos sábios, e perverte a causa dos justos.” (Deuteronômio 16:18). Até parece que ninguém sabe como funciona o judiciário no nosso país. Quem tem dinheiro para um bom advogado, pode fazer o que quiser, nunca será pego. Para quem não tem, que se lhe aplique o rigor da lei. O rico constrói mansões em área de manancial e não acontece nada. O pobre tem seu barraco destruído pelas máquinas da prefeitura e é expulso dali pela polícia. E ninguém, nem mesmo aqueles que produzem vídeos contra a iniquidade, se lembra de colocar o tema em pauta. Nem ouço pastores falando contra propinas. Mesmo porque a televisão mostrou alguns deles (quiçá alguns signatários do oportunista movimento anti-iniquidade) recebendo dinheiro sujo e ainda orando para agradecer por ele.
A especulação imobiliária é uma iniquidade. Novamente em Isaías: “Ai de vocês que adquirem casas e mais casas, propriedades e mais propriedades, até não haver mais lugar para ninguém e vocês se tornarem os senhores absolutos da terra!” (Isaías 5:8). Não há nada de errado em viver da renda de alugueres, mas participar da abominação de acumular propriedades para enriquecer, enquanto pessoas vivem embaixo da ponte é uma tremenda safadeza. Quando não, esse acúmulo é uma verdadeira expropriação do pobre. Há muitos crentes que conheço que fizeram fortuna comprando a preço de banana imóveis de gente que estava em aperto financeiro. Deus condenou isso no passado. Alguém arriscaria a defender que ele mudou de idéia hoje em dia? E onde estão os profetas atuais para se levantarem contra isso? Será que não podem abrir o bico, porque parte dos dízimos e ofertas que os sustentam advém de práticas como esta?
A agiotagem é uma iniquidade. Disse Deus através de Ezequiel: “Sendo, pois, o homem justo, e procedendo com retidão e justiça, não comendo sobre os montes, nem levantando os seus olhos para os ídolos da casa de Israel, nem contaminando a mulher do seu próximo, nem se chegando à mulher na sua separação; não oprimindo a ninguém, tornando, porém, ao devedor e seu penhor, e não roubando, repartindo e seu pão com o faminto, e cobrindo ao nu com vestido; não emprestando com usura, e não recebendo mais de que emprestou, desviando a sua mão da injustiça, e fazendo verdadeira justiça entre homem e homem; andando nos meus estatutos, e guardando as minhas ordenanças, para proceder segundo a verdade; esse é justo, certamente viverá, diz o Senhor Deus” (Ezequiel 18:5-9). Mais abaixo, no mesmo capítulo, Ezequiel cita literalmente: “que aparte da iniquidade a sua mão, que não receba usura nem mais do que emprestou”. Os bancos oficiais (e infelizmente muitos cristãos abastados também) cobram juros extorsivos de pessoas endividadas, aumentando ainda mais seu drama e tornando impossível a solvência de seus débitos. Isto é particularmente abominável quando se trata de transação com pessoas físicas. O sistema financeiro é uma verdadeira bandidagem. Por que será que os “profetas” fingem que não sabem disso? Ainda há alguns hipócritas caras-de-pau que citam a parábola dos talentos para dizer que Jesus Cristo deu seu aval a essa bandalheira! Ou são ignorantes (porque a parábola não está tratando de agiotas, mas de administradores) ou são safados mesmo. E o silêncio dos profetas pré-eleitorais é quase palpável…
O abuso nas relações capital e trabalho é um iniquidade. Esta veio do irmão Tiago, lá do Novo Testamento, para que ninguém alegue que esta preocupação social era dos tempos da Velha Aliança: “Vejam, o salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos, e que vocês retiveram com fraude, está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Vocês viveram luxuosamente na terra, desfrutando prazeres, e fartaram-se de comida em dia de abate” (Tiago 5:4,5). Quantos empresários cristãos há que cometem a sem-vergonhice de pagar menos do que o justo, menos do que o combinado, algumas vezes lesando o trabalhador e o governo pela prática de registrar o trabalhador por salário menor do que o efetivamente pago? Esta é uma fraude odiosa, mas raramente questionada por pastores, ensinadores, apóstolos ou profetas.
A pergunta que se faz é: por que ninguém fala contra estas coisas? Onde estão os vídeos que denunciem os que assim agem? Qual é o partido político que tem as mãos limpas a respeito destas coisas, de maneira que se possa dizer “votem neste” ou “não votem naquele”? Por que nunca ouvimos quem se manifestasse claramente a respeito dessas outras coisas?
Eu sei, ou pelo menos imagino, que alguns dos meus queridos irmãos que se posicionaram a respeito de iniquidades como o aborto ou união entre pessoas do mesmo sexo não compactuam com os demais pecados aqui citados. Da mesma maneira, eu também não concordo com o aborto ou homossexualismo. Não me importa se os defensores desses pecados gostem ou não, tenho o direito de ter meu posicionamento claramente contra essas coisas e continuarei a ser contra mesmo que um dia este direito me for negado. Não pauto minha fé pelas leis do país, mas pelo meu relacionamento com Deus. A questão que está em discussão aqui é outra. Minha crítica é ao fato de essas coisas terem surgido somente agora, durante o período de eleições; de terem sido direcionadas tendenciosamente contra um determinado grupo político, sendo que outros grupos dissimulam suas posições sobre os mesmos temas. Sobretudo, minha crítica deriva de não considerar coerente nem mesmo digno de confiança um posicionamento claramente político-partidário, assinado por pessoas de história duvidosa e que compactuam com uma iniquidade completamente incompatível com a fé evangélica (como é o caso de bispos idólatras que acendem uma vela para Deus, outra para os santos e outra sabe-se lá para quem). Entre os que assinam esses movimentos há eméritos salafrários, pedidores de dinheiro, que orientam seus “pastores” não somente a tirar a lã, mas se preciso tirar a carne das ovelhas para conseguirem o montante de dinheiro que precisam para executar seus projetos. São pastores que a si mesmos se apascentam e, portanto, pastores iníquos.
Dirão alguns que a questão não é essa. Pode não ser para você. Para mim, esta é a questão. Vote em quem quiser, defenda quem quiser, faça propaganda de quem quiser, fale mal de quem quiser. Mas procure ampliar o seu conceito de iniquidade, para que não chegue o dia em que não consigamos mais fazer a diferença entre a propaganda de um partido político e a Palavra de Deus.
Leia também: Eleições 2010: Qual é a minha parte?