Linha cruzada

Era uma noite quente de sexta-fera, já no final dos anos 80, começo de um verão. O lugar não poderia ser outro: Ginásio Nílson Nélson, Brasília. Para aqueles que nunca aterrissaram no DF, eu diria que o Nílson (estamos ficando íntimos) é o nosso Maracanãzinho. Detalhes à parte, voltemos ao rumo da sexta-feira em noite quente. Acontecia um daqueles megaeventos evangélicos, uma cruzada de libertação e cura com a presença de um grande pregador internacional. Chegáramos a ouvir propaganda no rádio anunciando a coisa. Era um tempo de explosões de comunidades cristãs alternativas, forte influência de novos ventos… e, como não poderia deixar de ser, de muita curiosidade.

Dona Mazinha quis ver de perto. Desafiou a si mesma a sair de casa e, para isso, precisou contar com a ajuda de alguns jovenzinhos que eram seus fãs incondicionais. Ela se locomovia por meio de uma cadeira de rodas. Como tivesse passado a vida toda envolvida com jovens, e ajudara a muitos deles, desfrutava nessa altura de uma resposta boa dos mais moços, isso em forma de admiração, de gratidão e de um sentimento de carinho do qual, infelizmente nem todos os idosos desfrutam. A resposta dos meninos foi imediata: “Vamos lá, irmã Mazinha!”

Nem é preciso dizer que o local estava lotado e que, além da multidão, havia os vendedores ambulantes e os candidatos a cargos políticos – duas castas de gente que consideram imperdíveis tais oportunidades. Também não vou descrever os detalhes de como os nossos preciosos irmãos chegaram ao ginásio, a fim de não enfadar o não menos precioso leitor. O fato é que chegaram e tiveram preferência, a ponto de poderem ficar em local, digamos, privilegiado – considerada a condição de Dona Mazinha.

Pois bem. Depois de todo um protocolo, com direito a apresentação de bandas “gospélicas” discursos de autoridades, propagandas de eventos similares e enaltecimento de egos, subiu ao palco o pregador. Era forte o homem, tinha rosto largo, extremamente branco, trajava uma calça cinza a combinar com paletó azul. Impunha respeito pela presença, de modo que o burburinho foi cessando aos poucos. Logo que tomou posição, deu de cara com Dona Mazinha. E, num gesto súbito e inusitado, apontou para ela e disse:

– You…!

Fez-se silêncio quase sepulcral no Nílson Nélson. Mais de dez mil olhares convergiram para a fragilizada figura de Dona Mazinha, que, avermelhada, viu-se desguarnecida, sem reação. Quis pensar que fosse outra pessoa, olhou para os lados. O anglo-saxônico insistiu, e agora contava com a ajuda do intérprete, que, de pronto, ratificou:

– A senhora mesma, a senhora que está na cadeira de rodas… suba aqui, por favor! Alguém poderia ajudá-la?

Os jovenzinhos, que também não esperavam pela ação impactante que ali se desenrolava, acordaram subitamente do torpor que envolvera todo o ambiente e cercaram a cadeira de rodas.

Subiram.

O pregador olhou fixamente nos olhos da Dona Mazinha. A tradução vinha: “levanta-te e anda; levanta-te e anda; levanta-te e anda…!”. E cada repetição da frase era como uma mudança de tom na partitura vocal do estrangeiro, que ganhava ímpetos de convicção e até um certo ritmo. A audiência aguardava ansiosamente. Ninguém ousava piscar um olho nem mover um músculo. E como houvesse certa hesitação de nossa irmã, o homem estendeu-lhe a mão. Surgiram palmas, a princípio tímidas, esparsas. Foram ganhando coesão e cadência, embora se mantivessem em volume baixo, como que a descrever a expectativa dos que as emitiam, todos clamando por um final feliz. Poder-se-ia dizer que as palmas configuravam um contraste de som e silêncio digno de grandes cineastas. O que viesse a acontecer a partir dali teria conseqüências cujas dimensões seria difícil mensurar.

E, para espanto dos incrédulos e admiração geral, Dona Mazinha levantou-se! Com dificuldades, mas conseguiu fazê-lo. O auditório veio abaixo, numa cena indescritível, em manifestação explosiva de algo nada fácil de explicar. Aquele momento inaugurava uma cruzada de “poder” que estava apenas começando.

Passaram-se os anos. Num dia desses, zanzando pelo Parque da Cidade, encontrei um dos (agora) ex-jovenzinhos. Era o que vou assemelhar ao discípulo amado, aquele que viu e registrou essas coisas, de forma que posso me lembrar delas e narrar aqui. Felizmente esse rapaz fora precavido o suficiente para, em meio à confusão daquela hora, proteger a cadeira de rodas. Pois há ocasiões em que cegos andam, coxos vêem, mas paralíticos preferem ficar mudos, ao menos por algum tempo. Dona Mazinha, querido leitor, não sofria de paralisia, mas de câncer. Usava a cadeira devido às limitações físicas que a doença e a idade, naquelas alturas, já lhe impunham. Hoje já não se encontra em nosso meio, mas está com Cristo… assim como o pregador internacional.

por Zazo, o Nego