Julgamento da década

Amigos, o país parou na semana passada para acompanhar, com certo exagero e sensacionalismo, o julgamento do casal Nardoni. Findas as exigências judiciais, estão condenados a décadas de reclusão por terem matado a menina Isabella. O forte clamor popular e a influência nem sempre isenta da mídia foram decisivos para o resultado do júri.

Não pretendo aqui discutir os aspectos tão exaustivamente levantados por todos no que tange ao julgamento, ao crime ou ao veredicto. Restrinjo-me à multidão que havia na porta do tribunal, clamando por justiça. Ou seria por vingança? Qual a diferença, se existe, entre justiça e vingança? Quem ali falasse em perdão corria o risco de morrer. Era efetivamente difícil descobrir o que, afinal, aquele povo queria. Se os dois, então acusados, fossem soltos no meio da rua, todos sabemos o que teria acontecido.

Interessa mais para mim refletir sobre alguns conceitos fundamentais que o caso evoca: vingança, justiça e perdão. Não estranhe se eu lhe disser que estes três conceitos são bíblicos e divinos. Eles nos remetem à teologia mais pura e prática que se possa produzir. Sim, até mesmo a vingança, pois a Bíblia diz “A mim pertence a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor”. E aí percebemos que a vingança não cabe nem pertence ao ser humano. Para o homem, ela está ligada às emoções do revanchismo, daquilo que chamamos de “fazer justiça com as próprias mãos”. A vingança de Deus está ligada à sua justiça, sendo parte integrante dela; é a hora de Deus agir e dar o troco na hora e do jeito certo. Sempre será um desastre quando vindicada pelo ser humano, sempre será completa quando efetuada por Deus.

Cabe, também, distinguirmos a justiça humana da justiça divina. Deus julga retamente, porque conhece todas as coisas completamente. Nada escapa do seu saber. Ele não precisa de laudos, de perícias, de conjuntos de provas. Na justiça humana, os semelhantes se julgam, baseados em convenções sociais chamadas de “leis”, punindo os infratores de acordo com seus códigos. Estes são imperfeitos, injustos, tendenciosos, parciais, estão sujeitos às nuances de tempo, cultura e de interesses. Mesmo quando a justiça humana se aplica, ela pode ser tardia, deformada e incompleta. E em qualquer caso, não está nas mãos de qualquer pessoa, mas apenas nas daqueles designados como autoridade sobre um povo.

Quanto ao perdão, é sempre importante compreendê-lo da forma adequada, para não corrermos o risco de banalizarmos uma atitude santa e piedosa. Cabe perdão ao acusados? Deus os aceitaria, caso fosse por eles procurado? Sim, certamente. Já se tem noticia de gente muito pior do que eles que acabou perdoado, salvo e redimido. Mas não se pode esquecer que o perdão de Deus não é incondicional. O perdão que Deus dá não é compulsório, não é automático, não é gratuito. Ele demanda confissão sem rodeios, sem justificativas, sem atenuantes, sem racionalizações. Apenas a confissão: “eu fiz assim e assim”, como disse Acã diante de Josué. É o jeito de Deus tratar o pecado. Não tem outro. Não há subterfúgios, não há recursos de defesa. Há apenas confissão e arrependimento, sem os quais não há possibilidade de perdão. Enquanto continuarem a negar candidamente o que fizeram, não há qualquer possibilidade de perdão. “O que encobre suas transgressões, jamais prosperará; o que as confessa e deixa, alcançará misericórdia” (Pv 28:13). Além deste aspecto, é bom que se diga que o perdão de Deus não afasta necessariamente as consequências do pecado cometido. Mesmo que os assassinos um dia se arrependam sinceramente, confessem seus pecados e sejam perdoados por Deus, isto não os isenta da pena a ser cumprida, mesmo que a graça de Deus lhes ofereça uma oportunidade para recomeçar suas vidas.

Deus pode vingar porque é absolutamente justo. Isto é relativamente simples de compreender. O complicado é pensar que ele pode também perdoar pelo mesmo motivo. Deus não perdoa jogando para baixo do tapete o pecado cometido. Isso seria impunidade, algo tão repugnante até mesmo para a corrompida e decadente sociedade brasileira. Seria injustiça. Para poder perdoar, Deus cobrou um preço impagável, até mesmo considerando os melhores e mais escolhidos esforços humanos: a punição por alguém que nunca houvesse pecado. Como não havia ninguém que cumprisse em si mesmo tão alto requisito, Ele mesmo se fez homem, em Seu Filho Jesus e o resto da história você já sabe. Quando Deus perdoa, ele apenas cobre aquele que confessa seu pecado com o valor do sacrifício de Jesus Cristo na Cruz do Calvário.

O casal Nardoni não merece perdão. Eles deveriam morrer e sofrer no inferno pelo resto de suas vidas. Mas há duas questões importantes a serem consideradas. Em primeiro lugar, isto não tem qualquer relação com o crime que cometeram. Eles já mereciam a perdição eterna muito antes de terem feito esta barbaridade com uma criança indefesa. Tem a ver com o fato de terem nascido em pecado. Em segundo lugar, nenhum de nós tampouco o merecemos. Deus nunca perdoou uma única pessoa que tenha vivido em toda a história da humanidade porque ela tenha merecido. Só perdoou por causa da Sua graça.

Compreendo a atitude da multidão soltando fogos na porta do tribunal. É o desabafo de um povo sofrido que vê triunfar a injustiça e o jogo de interesses. É a reação de pais e mães que perderam seus filhos de maneira precoce e violenta. Embora questionável sob vários aspectos, a manifestação é compreensível.

Receio somente que a maioria dos que ali estavam, inclusive um suposto pastor com sua mensagem um tanto desconexa, não tenha conseguido refletir muito além do forte impulso emocional que os moveu.