Eu não entendo de xadrez (na verdade comecei a desbravar os jogos de tabuleiro e descobri que é um hobby caro).  O xadrez é um jogo tradicional e popular, mas não (pelo menos não mais) massificado. 

A própria curiosidade e fascínio sobre o mistério desse “universo próprio dentro de 64 espaços” talvez seja uma das responsáveis pela repercussão positiva da história que a Netflix conta em The Queen’s Gambit

Arthur Igreja identificou alguns dos impressionantes efeitos que a produção teve. Os números são admiráveis e assustadores, mas nem um pouco surpreendentes considerando a força cultural (comercial e imaginativa) do streaming. 

Por exemplo, a busca por jogos de xadrez no eBay aumentou 250%, pesquisas sobre o jogo no Google bateram o recorde na década, o livro que inspirou a série virou best-seller 37 anos depois de ter sido lançado e o número de jogadores no chess.com cresceu 500%.  

Por que essa história teve/tem tanta força? O que ela diz pra gente sobre a experiência humana e sobre os rumos da nossa cultura? 

“O Gambito da Rainha” é uma trama biográfica que, como produções do tipo, convida o espectador a cruzar a trajetória da personagem desde uma infância traumática, crescimento conturbado e descoberta de potenciais singulares – e vícios destrutivos – até a ascensão quase que heróica. 

Essa é a história da fictícia enxadrista norte-americana Elisabeth Harmon (Ana Taylor-Joy). Beth perdeu a mãe quando era criança, e deixada num orfanato se encontrou no xadrez e se perdeu na dependência química. 

Depois de ser adotada por uma família fragilizada e com seu brilhantismo, a moça domina os circuitos de xadrez nacionais e internacionais. Aliás, as cenas dos jogos e o uso do olhar enigmático da protagonista são pontos fortíssimos nas cenas da série.  

No subtexto da jornada de Harmon, traumas familiares, problemas psicológicos, questões de gênero (principalmente relativas á revolução afetiva nos anos 60) e, a meu ver, principalmente o papel da comunidade na formação de identidade. Beth vai da ambição e segurança em seu brilhantismo – “Eu posso dominá-lo [o xadrez]. E é previsível, então se eu me machucar, eu só tenho que culpar a mim mesma” – e cai. 

Até encontrar redenção na amizade: “Eu não estou aqui para salvar você. Eu estou aqui porque você precisa que eu esteja. E é isso que a família faz”, é o que diz sua amiga Joele (Moses Ingram). 

A vertiginosa condição em que enxadrista se prende em uma corrida por reconhecimento e significado despenca quando a solidão supera seus sucessos. 

Na verdade, pra nossa cultura ávida por sucesso e viciada em celebridades, O Gambito da Rainha é uma metáfora promissora, que desafia as tendências individualistas guardadas em nosso coração ambicioso e caído, e encontra arrependimento e feixes de graça na solidariedade.