Como seria se os Estados Unidos fossem tomados por uma ditadura? Essa é a pergunta que motivou Margaret Atwood a escrever seu romance O Conto da Aia em 1985. De todas as repúblicas da América, os EUA são o único país que nunca viveu um período de governo autocrático. A democracia e a liberdade parecem ser valores fundamentais do ideal americano e não é fácil imaginar uma crise que possa colocar tais valores em risco. Em seu exercício especulativo, Atwood concluiu que a implantação de um totalitarismo socialista ateu em solo norte-americano era pouco provável. Um regime teocrático, contudo, não parecia tão impossível.
Há uma razão contextual para essa conclusão. A década de 80 foi a Era Reagan nos EUA. Junto com o presidente celebridade republicano Ronald Reagan (qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência) ascendia na mídia e na política um conservadorismo cristão patriótico. Ao mesmo tempo, a ameaça comunista soviética murchava atrás da cortina de ferro. O momento histórico apontava para um crescimento do conservadorismo de direita e um refreamento da esquerda. A projeção de Atwood não poderia ser outra: Se a América fosse governada por uma ditadura, essa seria uma teocracia cristã.
O romance é protagonizado e narrado pela aia Offred em uma América recém-batizada de República de Gilead. As aias, nessa distopia, são mulheres destinadas unicamente à reprodução. Tendo sua fertilidade atestada, essas mulheres eram designadas para casas de comandantes do governo para darem-lhes filhos e combaterem a enorme crise de fertilidade que assola esse mundo hipotético. Essa prática é fundamentada com um pretexto bíblico: Em Gênesis Raquel dá sua escrava Bila a Jacó para que esta desse filhos à sua ama. “Aqui está Bila, minha serva. Deite-se com ela, para que tenha filhos em meu lugar e por meio dela eu também possa formar família” (Gn. 30.3).
Com maestria, Atwood nos insere no pesadelo distópico de Gilead. Entre a narrativa de fatos presentes e flashbacks elucidativos, o terror dessa teocracia vai-se descortinando em tons sombrios a cada capítulo. Ainda que pensemos que uma realidade semelhante esteja distante de nós, é impossível não identificarmos certos argumentos do comandante e de outros defensores do regime com algumas das falas de personalidades políticas do nosso tempo.
A crítica de Atwood não é ao cristianismo em si. Entre os inimigos do regime de Gilead estão cristãos quakers, batistas e católicos. O alvo da crítica é o moralismo insensível e hipócrita que sempre acompanha os regimes teocráticos e servem de pretexto para oprimir as minorias. Gilead não é um paraíso cristão. É um inferno povoado por pecadores hipócritas sob uma fachada de santidade. “Túmulos caiados”, como diria o Mestre.
E essa é a razão pela qual os cristãos de hoje deveriam ler esse livro. As distopias nos ajudam a estabelecer limites, projetando as consequências de nossas ações e discursos em um ambiente ficcional. E a obra de Atwood denuncia as tendências autoritárias subjacentes a discursos cristãos contemporâneos e nos obriga a refletir nas consequências de certas posições que assumimos.
No quarto de Offred há uma almofada bordada com a palavra “Fé”. Em um momento do livro a protagonista se questiona onde estariam as outras duas almofadas “Esperança” e “Amor” que comporiam o provável trio de 1 Coríntios 13. Essa é a imagem do cristianismo de Gilead: uma fé sem amor e, por isso, sem esperança. E é esse cristianismo, odioso e desesperado, que devemos evitar, sob o risco de vermos a distopia ganhando vida.