II. A sucessão dos dias e o passar do tempo.
1. A relatividade e o tempo
Se queremos tratar dos dias, temos, então, que tratar do tempo; e se temos que tratar do tempo, é necessário deixar, por um momento, a teologia e procurar o que precisamos em outra ciência, na física, por onde se encaminhou o estudo do tempo.
E, na física, a reflexão sobre as contradições e inconsistências na compreensão do espaço, da matéria e do movimento, levaram à teoria da relatividade. Surgindo dos problemas do campo (ou da influência da matéria sobre o espaço – como ocorre no campo gravitacional) a teoria (…) abrange todos os fenômenos da física, lembrando que a divisão em tempo e espaço não tem significado objetivo algum, porquanto o tempo não mais é “absoluto”, atribuindo-se novas propriedades ao contínuo de espaço-tempo (…)[1] . Ou seja, coube à relatividade cuidar, exatamente, dos meios e produtos iniciais da criação – que serão desenvolvidos no decorrer da primeira semana: tempo e espaço, agora “espaço-tempo”, movimento e matéria – reconhecendo-se que nenhum deles ocorre isoladamente, mas sim, interagindo – todos eles, permanentemente – sob mútua influência[2] .
Assim, como “ferramenta” adequada para o dimensionamento de todos os acontecimentos de nosso mundo físico, é que se utilizará a teoria da relatividade neste estudo – encontrando nela a “linguagem” característica da criação. Deixando de lado, obviamente, suas especulações sobre o início do universo – já que decidimos optar pela informação bíblica, interessa-nos, em primeiro lugar, o princípio que adota – ou a própria idéia da relatividade[3], que nos será de aplicação mais teológica que física; e, em segundo lugar, seus achados na compreensão da natureza do tempo – de aplicação mais física que teológica. E, de acordo com o nosso propósito, não se terá a necessidade de tratar das equações, nem dos detalhes, a que chega a teoria[4].
Se tivéssemos que identificar, portanto, o ponto de partida para o presente estudo, ele provavelmente seria este – no princípio da relatividade: os eventos descritos devem ser relacionados a referenciais previamente identificados. Assim, é preciso estabelecer a estrutura de referência utilizada e os sistemas coordenados (SC) – aos quais serão os dias referidos.
Antes, porém, temos que tratar da generalização[5] dos principais conceitos envolvidos, buscando significados suficientes para todas as manifestações de tempo, dias e crepúsculos. E, depois de separar a noção dia da noção tempo, serão considerados – respectivamente, a ocorrência dos dias, os segmentos componentes do dia e os crepúsculos. Sobre o tempo, não haverá necessidade de outras considerações, adotando-se a concepção obtida com a teoria da relatividade – conforme tem sido apresentada[6] .
2. Tempo e espaço
Desde a infância identificamos o passar dos dias na alternância sucessiva da claridade com a escuridão: vindo sucessivamente – uma depois da outra, na duração, mudam, enquanto duram, transformando-se continuamente – de uma em outra. Por sua vez, as ideias de sucessão, continuidade e mudança, levam-nos à representação intuitiva do tempo – que percebemos como escoamento, semelhante a um rio que flui continuamente. Assim, a partir da ocorrência dos dias – que vemos, chegamos à idéia do tempo – que não vemos; e estão eles, dias e tempo, de tal maneira associados, que nos parecem, ambos, uma única e mesma coisa; tanto é que, sem nenhum impedimento prático – que determine a identificação separada de um e de outro, “medimos” o tempo contando-se os dias – como sempre fazemos no uso comum do calendário.
Por outro lado, se os dias não são, eles mesmos, o tempo, como ocorre que podemos “medir” o tempo contando-se os dias? Que tipo de relação pode unir dias e tempo? Existiria, entre eles, uma relação de dependência – como se os dias fossem um produto do tempo, ou o tempo um produto dos dias? Ao que tudo indica, não devemos esperar, também, que haja qualquer relação de causa e efeito entre os dias e o tempo. Ao dizer que as propriedades do espaço e o fluir do tempo se ligam, inextricavelmente, com as forças da gravidade, ou, então, que não existe qualquer tempo absoluto: o fluir do tempo depende do movimento e (…) do campo gravitacional, a relatividade não apenas “desqualifica” os dias como referência para o tempo, como apresenta outros elementos que, de fato, determinam sua existência. Ou seja, assim como os dias, também o tempo – e cada um deles ao seu modo, dependem das propriedades do espaço, do movimento e do campo gravitacional[7]; ou, ainda, dizendo de outra maneira: tanto um como outro resultam da conjuntura física à qual estão relacionados, conforme as propriedades do contínuo espaço-tempo[8]. No caso particular dos dias e tempo que conhecemos na experiência sensível, resultam, ambos, da mesma conjuntura física que a nossa visão alcança no espaço. Assim, ainda que os dias não sejam, eles mesmos, o tempo, são-nos como “mostradores”, ou “marcadores”, do espaço e do tempo – no espaço-tempo em que nos movemos e existimos[9].
3. Os dias e o calendário
Portanto, é na condição de mostradores e marcadores do tempo que contamos os dias: como se a alternância entre a claridade e a escuridão nos “desenhassem” o passar do tempo, “imprimindo-o” na figura de uma fita contínua, que se move sem parar, num passar regular e constante. Assim é que, na composição do calendário[10] , podemos “cortar” o desenho dos dias, em unidades repetitivas, que se chamam “dia”. E, ainda que os dias continuem ininterruptos, cada unidade “dia” pode ser obtida de acordo com as convenções adotadas, da maneira que, em qualquer parte do dia se poderia definir um começo e fim da unidade. Conforme será visto mais adiante, a partir da páscoa do Êxodo, p. ex., convencionou-se que o início dos dias se daria no pôr-do-sol, como se lembra, ainda hoje, nas divisões do calendário hebraico.
Na disposição atual do nosso calendário, convencionou-se que o marco de “corte”, na separação, de cada unidade chamada “dia”, deve ocorrer durante a noite, “dividindo-se” a escuridão em duas metades: a primeira delas “fica” com o dia anterior – que se encerra às vinte e quatro horas; e a segunda “fica” com o dia posterior – que se inicia na hora zero. Nosso dia de vinte e quatro horas, portanto, resulta de um segmento inteiro de claridade – com duração aproximada de doze horas, que se coloca no meio de duas metades “divididas” de escuridão – que, durando mais ou menos seis horas cada uma, respondem, somadas, pelas demais doze horas – que cabem à noite. Desta forma, as duas “metades” de escuridão são, na realidade, obtidas de duas noites distintas, inteiras e separadas – uma da outra, por um período de claridade.
A claridade, por sua vez – que tem início e fim nos segmentos extremos de luz crepuscular, existe marcada pela trajetória visível do sol – que divide o dia em suas duas metades: depois de um breve período de luz inicial, e crescente, surge o sol – que sobe no firmamento até o seu ponto mais alto, quando se encerra o segmento da manhã; a seguir, no segmento da tarde, desce o sol – até desaparecer no horizonte, quando é seguido por outro período, também curto, de luz final e decrescente.
4. Os dias e o tempo
A “quebra” da noite em duas “metades” – na composição dos dias do nosso calendário, é, assim, artificial, já que não existe, no cenário da escuridão, nenhum evento físico que a divida com simetria – ao contrário do que ocorre com a claridade, que se divide em metades bem delimitadas: a manhã – com luz crescente e sol ascendente, e a tarde – com luz decrescente e sol descendente. Conceitualmente, como vimos, a noite é um período inteiro e único de escuridão, que se contrasta e se alterna com a claridade, no passar contínuo dos dias – responsável pelo conceito de dia e noite que temos, perfazendo o período de vinte e quatro horas, representado na unidade de calendário.
Nossa atenção deverá ser, em primeiro lugar, portanto, com os conceitos relacionados à ocorrência física dos dias – bem como de suas partes constituintes; e, em segundo lugar, com os limites que caracterizam o início e fim da unidade de calendário – chamada “dia”. E como nossa intenção é tratar da apresentação dos dias, sejam eles quais forem, temos que definir de que maneira serão referidos. Por exemplo, como é possível que o nome “dia” – ao mesmo tempo em que significa, apenas, o período de claridade, possa significar, também, o conjunto que se obtém na soma da claridade com a escuridão?
5. O dia e os crepúsculos
Na busca de um significado que possa atender todas as ocorrências da palavra “dia”, é preciso “retirar” do conceito dia, o vínculo obrigatório com a duração, pré-determinada e “fixa”, de vinte e quatro horas – reconhecendo que o aspecto “duração” não se mostra conceitualmente relevante em sua qualificação[11]. Entende, portanto, que seria melhor definir “dia” como a expressão de determinado curso de tempo que encerra duas condições sucessivas, opostas e simétricas – numa generalização que atenderia, de maneira consistente, todos os usos do termo dia.
Assim, se poderia chamar de dia dual, à unidade que se forma com a junção do dia com a noite – sendo a claridade oposta, de natureza diversa e simétrica, à escuridão; e de dia diamétrico, à claridade existente no dia, que encerra, também, dois segmentos que mutuamente se opõem – ainda que sejam, ambas, da mesma natureza: sendo portadoras de luz, a manhã se opõe à tarde – tal como ocorre no “diâmetro”, em que os dois raios são equivalentes, opostos e sucessivos.
Esta concepção pode, igualmente, ser aplicada para Gênesis 2,4b – onde o termo hebraico para dia aponta também para dois segmentos distintos, correspondentes e sucessivos de tempo, visto que, “nesse dia”, a ausência – anterior, dos céus e terra, é seguida pela presença – posterior, dos céus e da terra – então criados.
E sobre os crepúsculos[12], por serem portadores de luz, no início e fim da claridade – antes e depois do sol, considera-os como segmentos extremos do dia diamétrico. Contudo, a fim de se evitar o “contra-senso” de não se ter luz incipiente, começando e terminando os dias na primeira semana – que existiram sem a ocorrência do sol, retira da concepção crepúsculo a referência obrigatória ao sol (crepúsculo matutino – antes do surgimento do sol, e crepúsculo vespertino – depois do desaparecimento do sol), definindo os crepúsculos, simplesmente, como o período em que a luz ocorre no firmamento sem a presença do sol. Assim, a luz crepuscular que conhecemos hoje, é tomada como lembrança da claridade que existiu no firmamento dos primeiros dias, que se estendia – do início ao fim do dia, sem a visão do sol; e não somente nos primeiros três dias, mas também na segunda metade da semana que, apesar de contar com a visão de um astro – no firmamento do dia, ele não é referido como sol, mas como Grande Luzeiro[13] .
Depois de avaliar as principais ocorrências e conceitos relacionados à existência do dia e da noite, dos crepúsculos e do tempo, podemos, então, seguir adiante – estudando as descrições dos dias, conforme se encontram nos cinco primeiros livros da Escritura – ou, na Lei de Moisés. É o que será visto na próxima sessão, O pecado e a Lei.
Notas:
[1] A Evolução da Física, pp. 163, 171, 199.
[2] Ou, ainda, que espaço e tempo, “existem ligados um ao outro, formando um todo coeso (o ‘espaço-tempo’), de maneira que, havendo mudanças em qualquer um deles afeta-se inteiramente o todo e havendo mudanças no todo afeta-se também cada um deles”; “o módulo espaço-tempo (como) uma unidade plástica, mutável, (…) permite conceber outros tipos de tempo, diferentes deste, com aparência de único e absoluto, que conhecemos pela via dos sentidos” (Cf. Gênesis Um e a explosão da vitrine, pp. 116, 117).
[3] Einstein e Infeld escrevem, reportando-se aos fundamentos descritivos, no princípio da teoria da relatividade: “temos de determinar as posições de pontos materiais em algum tempo definido (…) Mas a posição tem de ser sempre descrita em relação a algo (…). Devemos ter o que chamamos de estrutura de referência (…) Ao descrever as posições de objetos e pessoas em uma cidade, as ruas e avenidas formam a estrutura à qual fazemos referência. (…) Essa estrutura, à qual referimos todas as nossas observações (…), é chamada sistema coordenado. Como essa expressão será usada com muita freqüência, escreveremos simplesmente SC para representá-la” (A Evolução da Física, p.129).
Também se usará, neste ensaio, a abreviatura “SC” com o mesmo significado. Como será visto na próxima seção, nossa estrutura de referência, para o estudo dos dias, será composta pelo pecado e a Lei de Moisés que, como “ruas e avenidas” do exemplo acima, permitirão três arrumações diferentes, ou três sistemas coordenados, aos quais serão os dias referidos.
[4] De fato, é um grande alívio – que precisa ser compartilhado, a reafirmação de que “a maioria das idéias fundamentais da ciência são essencialmente simples, e podem, via de regra, ser expressadas em linguagem compreensível a qualquer um; e como estamos interessados aqui apenas em idéias, não precisamos preocupar-nos com as dificuldades técnicas” (A Evolução da Física, pp. 33 e 142).
[5] Segundo Einstein e Infeld, a “generalização de um conceito é um processo muito frequentemente usado (…); sem esquecer que, contudo, uma exigência deve ser rigorosamente satisfeita: qualquer conceito generalizado deve reduzir-se ao conceito original quando as condições originais forem preenchidas” (A Evolução da Física, p.26).
[6] Igor Novikov assim se refere à mudança na compreensão do tempo: “Chegou a época moderna e a humanidade deparou-se nos seus conhecimentos com condições nas quais não se pode desprezar a influência da matéria sobre o espaço e o tempo. Apesar da inércia do nosso pensamento, temos de nos habituar a esta novidade. De acordo com a teoria de Einstein, no campo gravitacional forte o tempo decorre mais devagar do que o tempo medido longe das massas gravitacionais (onde a gravidade é fraca).” Ou seja, “o tempo pode correr de maneiras diferentes. A nova geração já aceita com mais facilidade as verdades da teoria da relatividade (as bases da teoria da relatividade restrita são já estudadas na escola), do que algumas décadas atrás, quando a teoria de Einstein era mal aceita mesmo pelas inteligências mais avançadas” (Os Buracos Negros e o Universo, pp. 20 e 22).
[7] Os Buracos Negros e o Universo, pp. 20 e 21.
[8] A Evolução da Física, p.199.
[9] Agostinho, sem conhecer ainda o módulo espaço-tempo, “leva para a primeira semana um ‘material’ próprio do espaço-tempo de nossos dias: o sol. A palavra sol não aparece no cenário dos primeiros dias; no espaço-tempo da primeira semana o astro do dia tem outro nome: Grande Luzeiro. Em segundo lugar, trata a tarde e a manhã existindo em relação ao astro do dia. Ora, Gênesis Um descreve justamente o inverso: quando o astro do dia é introduzido no cenário da criação, pela primeira vez no quarto dia, as tardes e manhãs já existiam no firmamento, sozinhas, há três dias! E mesmo depois que aparece o astro, a fim de sinalizar o dia, continuaram (as tardes e manhãs) no mesmo papel que exerciam antes do surgimento dele: o de representar toda a luz que existe no dia. Ou seja, na primeira semana não são as tardes e manhãs que existem em relação ao astro, mas (é) o astro que existe em relação a elas (…)”. O escritor de Gênesis parece ter o “cuidado de atribuir nomes diferentes para duas visões diferentes dos astros maiores do dia e da noite: antes de caírem as águas do dilúvio, Grande e Pequeno Luzeiro; depois que caíram as águas, Sol e Lua. O texto dá a entender que a queda de tanta água, capaz de inundar a terra inteira, diminui a quantidade de água colocada no alto, pelo vão criado entre as águas (no segundo dia). Essa mudança física traz consigo (no mínimo) duas ocorrências novas: uma é o arco-íris e a outra, uma visão direta, e mais nítida, dos astros maiores. Sem a interposição da massa de água, o que era Grande e Pequeno Luzeiro, recebem os nomes de Sol e Lua. O arco-íris testemunha, portanto, essa última mudança na configuração do espaço, desencadeada pelo dilúvio, que dá início à era natural em que vivemos” (Cf. Gênesis Um e a explosão da vitrine, pp. 117 e 119). Mais adiante voltaremos a falar sobre esta troca de nomes, principalmente no que se refere ao sol.
[10] Mais informações sobre as convenções adotadas – pelos diversos povos e culturas, no registro do tempo e contagem dos dias, poderão ser obtidas em outros trabalhos – que tratam especificamente do assunto. Ultrapassa os limites deste estudo, as considerações ligadas ao desenvolvimento do calendário.
[11] Considerando, como já vimos, que o período de vinte e quatro horas se chama dia; e, também que a claridade – que dura 12 horas, se chama dia; e, ainda, que um dia de trabalho, que dura apenas 10 horas – iniciando-se às 7 e terminando às 17 horas, também se chama dia; e se ajunta o fato, de que os dias podem ser mais longos ou mais curtos – e todos eles continuam sendo chamados dia; e, ainda a citação de 2 Pe 3,8 (um dia é como mil anos e mil anos como um dia), indicam que, provavelmente, devemos procurar outro significado para o termo dia (as citações bíblicas são da Bíblia de Jerusalém).
[12] Segundo o dicionário, “luminosidade de intensidade crescente ao amanhecer (crepúsculo matutino) e decrescente ao anoitecer (crepúsculo vespertino), proveniente das camadas superiores da atmosfera pelo sol, quando, embora escondido, está próximo do horizonte” (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p.399).
[13] O ensaio admite importância conceitual a esta troca de nomes, equivalente às mudanças dos nomes de mulher para Eva, de Simão para Pedro, ou de Saulo para Paulo, diferentemente da interpretação habitual (conforme se diz na nota “i”, p. 32, da Bíblia de Jerusalém), que entende que a palavra sol é evitada a fim de se afastar a adoção de práticas cultuais de outros povos – vizinhos de Israel. Ainda que, de fato, isto possa ter sido útil na existência bíblica de Israel, a continuidade da Escritura dá sinais claros da necessidade de outra interpretação, como, p. ex., a que temos considerado aqui. Não fosse assim, Eclesiastes 1,9 não poderia dizer, p. ex., nada há de novo debaixo do sol, ignorando as criações, obviamente novas, do quinto e do sexto dia. Admitindo-se, portanto, que a figura atual do sol só aparece no firmamento depois que caíram as águas do dilúvio (conforme já vimos anteriormente), aí sim, pode-se dizer que nenhuma novidade ocorreu debaixo do sol.
A concepção posterior, e mais habitual, para os termos hebraicos tarde e manhã, significando os extremos crepusculares do dia-luz, não pode, portanto, ser aplicada aos dias de Gênesis 1: os dois crepúsculos têm o sol como referência; e se o sol não é mencionado na primeira semana, qualquer condição que o tenha como referência não cabe no cenário inicial da criação. Mais: depois da primeira semana, as próximas referências ao astro do dia, em Gênesis 15,12.17 e 19,15.23, já mencionam o nome “sol”; e nas duas primeiras vezes em que é citado, a referência se dá de forma negativa: na primeira, “espera-se” que o sol desapareça do horizonte para se firmar a aliança com Abrão (que ainda não era Abraão); e na segunda, inversamente, “espera-se” que o sol apareça no horizonte quando, então, se inicia a destruição de Sodoma e Gomorra.
Por outro lado, os momentos mais significativos e marcantes da aliança com Israel (na história ou nas prescrições do culto), se darão no período da ausência do sol no firmamento, sob a luz crepuscular – principalmente o da tarde, como se estivesse “evitando” o “testemunho” do sol; enquanto que, diversamente, em Eclesiastes, se repete, “à exaustão”, a condição debaixo do sol, associando-se, ao curso visível do sol, diversas condições naturais que surgiram depois do pecado – como a maldade, cansaço, delito, desgosto, luto, doença, irritação, injustiça, opressão, etc., etc. – a lista vai longe! , e que, ainda hoje, nos são bem familiares, na existência que temos debaixo do sol – ou “sob o testemunho” do sol.
Não se quer dizer, com isso, é claro, que o sol seja uma ocorrência “má”, irregular, ou “errada” na criação (o Novo Testamento se refere favoravelmente a ele, em Mateus 13,43). Talvez se possa comparar estas duas apresentações dos astros maiores do dia, a uma peça de roupa – quando nova, anteriormente, e velha, posteriormente: nos dois casos continuam sendo a mesma peça de roupa, ainda que sob duas apresentações diferentes. É preciso considerar, ainda, que na contemplação natural do sol, de fato, se poderia imaginar que ele tenha sido resultado de uma obra de criação; mas, por outro lado, como imaginar que houve alguma mudança, em sua forma de apresentação no firmamento, a não ser que fosse mediante informação revelada – como parece indicar esta troca de nomes. Talvez o autor bíblico estivesse comunicando que, no sexto dia – terminada a criação, tudo estava “muito bom”, porque debaixo do que era um grande luzeiro – que ainda não era como o sol que se vê hoje, não havia também o que conhecemos hoje, debaixo do sol – na vigência da morte.
Isto nos remete ao papel “sinalizador”, atribuído aos astros maiores que vieram à existência no quarto dia – para separar o dia e a noite, como sinais, tanto para festas quanto para os dias e os anos (…). Mais do que simplesmente sinalizar a existência dos dias e das noites – que já existiam antes do quarto dia, se poderia atribuir a eles, também, a sinalização de dias e tempos determinados – ou diferentes entre si, na trajetória inteira – e futura, da criação: de fato, ainda na primeira semana, os primeiros três dias, que existiram “soltos” – ou sem a amarração do ano, seriam “diferentes” dos últimos três dias – que passaram a existir, de alguma forma, associados à repetição do ano; por outro lado, hoje, o astro maior – chamado sol, existindo com o arco-íris – que não fora criado na primeira semana, sinaliza os dias e anos, que se desenvolvem sob a morte; e, também, como será visto mais adiante, o sol estará implicado na distinção de dois tipos de dia: o dia que terá início – na revelação da páscoa do Egito, com o pôr-do-sol, será “separado” do dia percebido pela intuição comum – que se inicia com o nascer-do-sol.
por Jorge Luiz Sperandio