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Loucura de pedra
De outra forma, o que dizer das afirmações que seguem abaixo, encontradas no capítulo sete [1] do livro?
Apesar de seus valores familiares meio estranhos, os ensinamentos éticos de Jesus foram – pelo menos em comparação ao desastre ético que é o Antigo Testamento – admiráveis; mas existem outros ensinamentos no Novo Testamento que nenhuma pessoa de bem apoiaria. Refiro-me especialmente à doutrina central do cristianismo: a da “expiação” do “pecado original” […] O pecado original em si vem diretamente do mito de Adão e Eva, do Antigo Testamento. O pecado deles –comer do fruto da árvore proibida – parece merecedor de não mais que uma simples bronca.
Mas a natureza simbólica do fruto (o conhecimento do bem e do mal, que na prática se revelou o conhecimento de que eles estavam nus) foi o suficiente para transformar a travessura na mãe e no pai de todos os pecados. Eles e todos os descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Éden, privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalhos dolorosos, no campo e no parto, respectivamente. […]
Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina -transmitido pelo sêmen, de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer a herdar o pecado de um ancestral remoto? Agostinho, por sinal, que com razão se considerava uma espécie de autoridade pessoal em pecado, foi o responsável por cunhar o termo “pecado original”. Antes dele era conhecido como “pecado ancestral”. Os pronunciamentos e debates de Agostinho exemplificam, para mim, a preocupação pouco saudável dos primeiros teólogos cristãos com o pecado. Eles podiam ter dedicado suas páginas e seus sermões a exaltar o céu estrelado, ou as montanhas e florestas, os mares e os coros do amanhecer. Essas coisas são mencionadas às vezes, mas o foco cristão está sempre no pecado pecado pecado pecado pecado pecado pecado. Que preocupaçãozinha chata para dominar sua vida. […]
Agora o sadomasoquismo. Deus encarnou-se como homem, Jesus, para que pudesse ser torturado e executado em expiação do pecado hereditário de Adão. Desde que Paulo expôs essa doutrina repugnante, Jesus vem sendo adorado como o redentor de todos os nossos pecados. Não apenas o pecado passado de Adão: pecados futuros também, decidam ou não as pessoas futuras cometê-los!
Paulo, como deixa claro o intelectual judeu Geza Vermes, estava impregnado do velho princípio teológico judaico de que sem sangue não há expiação. Em sua Epístola aos Hebreus (9,22), aliás, ele diz exatamente isso. Os estudiosos progressistas da ética hoje em dia já acham difícil defender qualquer tipo de teoria retributiva da punição, imagine então a teoria do bode expiatório –executar um inocente para pagar pelos pecados dos culpados. De qualquer maneira, (não dá para não questionar), quem é que Deus estava querendo impressionar? Presumivelmente ele mesmo – juiz e júri, além de vítima de execução. E, para completar, Adão, o suposto executor do pecado original, nem existiu: um fato estranho –tudo bem que Paulo não soubesse, mas um Deus onisciente supostamente saberia (e Jesus também, se acreditar que ele era Deus) – que mina fundamentalmente a premissa de toda essa teoria tortuosa e nojenta. Ah, mas é claro, a história de Adão e Eva era apenas simbólica, não era? Simbólica? Então, para impressionar a si mesmo, Jesus fez-se torturado e executado, numa punição indireta por um pecado simbólico cometido por um indivíduo inexistente? Como eu disse, loucura de pedra, além de cruelmente desagradável.
A teologia de Dawkins
A que fundo de poço chegamos! O cristianismo como loucura de pedra! Aliás, por falar em delírio, loucura e histeria, ficou faltando Freud! Não encontrei nenhuma referência a ele no livro; nem sequer falando mal, como era de se esperar. E olha que tem muita coisa interessante, sobre ancestralidade e infância, por exemplo, em Totem e tabu ou Moisés e o monoteísmo. Seria uma desqualificação do adversário na corrida pelo primeiro lugar da explicação de tudo? Ou será que ele não atinge o padrão ouro do pensamento científico aprovado? Ou, então, quem sabe, porque fala muito em problema problema problema problema problema problema problema – uma preocupaçãozinha chata demais para o competentíssimo relojoeiro cego [2] da evolução? Uma indignidade, talvez, para o grande resolvedor de imperfeições, ou o supremo provedor de todas as maravilhas que já existiram, desde sempre – na imensidão do tempo geológico, e para sempre -na extensão inteira do universo?
Deixando de lado, entretanto, o desconforto e a paixão que resultam do veneno que destila na obra, é possível encontrar coisas interessantes em sua tagarelice. Refiro-me ao olhar especulativo que dirige à Escritura, especialmente às considerações da seção O NOVO TESTAMENTO É MELHOR? [3]. Ressalvando-se a incerteza sobre a autoria da Carta aos Hebreus[4], o raciocínio teológico que desenvolve me parece de profundidade comparável ao de Paulo na Carta aos Romanos. Que ironia: como se retardasse uma avaliação crítica interna – conduzida corajosamente pelo próprio cristianismo, eis que ela surge agora, impiedosa, vinda de fora dos seus muros! – fico imaginando como seria se Deus trouxesse, também, o Sr. Dawkins para o nosso lado.
De fato, não tem sido comum encontrarmos considerações com tamanha acuracidade e argumentação tão vigorosa. O que temos freqüentemente é um questionamento mais leve, que não vai muito além do conhecimento infantil: o material de estudo reservado às crianças é limitado e incompleto, incapaz, portanto, de atender as dúvidas de uma percepção adulta. Assim, com um conhecimento superficial, não conseguimos ir além de comentários como este de Daniel Dannet [5]: O Deus Bondoso que amorosamente moldou cada um de nós (todas as criaturas grandes e pequenas) e salpicou o céu com estrelas brilhantes para o nosso encanto – esse Deus é como o Papai Noel, um mito da infância, nada que um adulto de mente sã e sem ilusões, possa acreditar literalmente. É preciso transformar esse Deus em um símbolo de algo menos concreto ou então abandoná-lo.
Por outro lado se, quando adulto – na posse de um conhecimento maior, há interesse em aprofundar-se no questionamento, o que encontramos é pura frustração, como se vê, por exemplo, neste comentário, sobre a criação, na Bíblia de Jerusalém: O texto (da criação) utiliza uma ciência incipiente. Não se deve procurar estabelecer concordâncias entre este plano e nossa ciência moderna; mas é preciso ler nesta narrativa, numa forma que traz a marca de sua época, um ensinamento revelado, de valor permanente, sobre Deus, único, transcendente, anterior ao mundo, criador [6].
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Notas:
[1] Deus, um delírio: pp. 305 a 359.
[2] Dawkins, em outro livro seu (O relojoeiro cego, p. 21), informa que tomou emprestado a figura do relojoeiro de “um famoso tratado do teólogo setecentista Willian Paley”. Diz ele, que o trabalho de Paley “Natural theology – or Evidences of the Existence and Attributes of the Deity Collected from the Appearences of Nature (Teologia Natural – ou Evidências da existência e dos atributos da divindade reunidos a partir dos fenômenos da natureza), publicado em 1802, contém a exposição mais conhecida do ‘Argumento do Desígnio’ (Design) – até hoje o mais influente dos argumentos em favor da existência de um Deus”. Mais adiante, pp. 65 e 66, diz que “Segundo a hipótese de Paley, os relógios vivos foram projetados e construídos por um exímio relojoeiro. Nossa hipótese moderna afirma que (eles) são obra de etapas evolutivas graduais da seleção natural. (…) nesse caso, o ‘designer’ é a seleção natural inconsciente, o relojoeiro cego”.
[3] Deus, um delírio: pp. 323 a 327.
[4] A Bíblia de Jerusalém, pp. 2116 e 2117.
[5] Daniel Dannet, A perigosa idéia de Darwin, p. 18.
[6] A Bíblia de Jerusalém, nota “a”, p. 31.
por Jorge Luiz Sperandio