Demônios do Templo (1)

Cláudia e Adilson vêm para mais uma consulta de pré-natal no posto de saúde próximo da sua casa, a quarta desde o início da gravidez. A triagem infecciosa do primeiro trimestre era negativa, as medidas uterinas normais para a idade gestacional, os batimentos cardíacos e movimentos fetais presentes e dentro dos limites da normalidade. Fora um ligeiro excesso de ganho de peso, Cláudia estava muito bem.

— Cláudia, sua gestação está indo bem. Preciso que você cuide mais da sua alimentação. Apesar da gravidez aumentar seu apetite, não recomendo que você engorde demais para não prejudicar a sua própria saúde. Adilson, vocês já escolheram um nome para o bebê?

— Pedro Paulo — disse orgulhosamente o pai que, apesar de trabalhar muito como operário em uma indústria de embalagens plásticas, não deixou de participar de nenhuma consulta da esposa.

Adilson e Cláudia tinham três anos de casados. Moravam no subúrbio, em casa própria. Dois quartos pequenos, sala conjugada com a cozinha. Uma janela nos fundos dava vista para um terreno baldio. Na fachada, somente a janela do quarto do casal — que permanecia fechada quase o tempo todo para não entrar a poeira da rua — e a porta de entrada que dava para a sala conjugada. Apesar de pobres, Adilson e Cláudia eram caprichosos. As paredes internas e externas eram rebocadas e pintadas de branco. O piso de cerâmica foi uma conquista! Tiveram que economizar o 13º de ambos para comprar o material. Um amigo da família fez um preço camarada desde que Adilson fosse o “ajudante”. Passaram um final de semana todo assentando e rejuntando aquele piso.

O jovem casal decidiu, então, que era hora de ter um bebê. Cláudia suspendeu o anticoncepcional que tomava no mês de junho. Pensavam que seria melhor nascer no verão, temendo que o frio e a poluição da metrópole atrapalhassem a respiração do recém-nascido. Cláudia tinha bronquite e sabia bem o que era sofrer com falta de ar no inverno quando o ar fica pesado e frio. Na primeira semana de agosto Cláudia começou a ficar nauseada. Empolgada foi na farmácia e comprou um PregTest urinário. Positivo.

— Pessoal, estamos na 36ª semana de gestação. A barriga da Cláudia está muito grande. Evitem esforços intensos. Não queremos uma contusão lombar nesta altura do campeonato. Você vai notar algumas contrações esporádicas que apesar do desconforto não são contrações de parto. Qualquer situação anormal vocês devem retornar ao posto.

Cláudia era operária numa fábrica de pastilhas cerâmicas. Em conversa com a gerente de RH da firma acertou que nas últimas semanas da gravidez ficaria com um serviço menos pesado. Desde a 35ª semana mudou para a função de esmerilhadeira. Numa bancada procurava pequenas imperfeições nas pastilhas selecionadas para montagem de mosaicos.

Adilson, por sua vez, tomou uma atitude diferente. Tinha direito a cinco dias de folga quando o bebê nascesse. Programou suas férias a partir do sexto dia — tudo para ficar o maior tempo possível com Cláudia e o pequeno Pedro.

Enfim o mês de maio. Era um domingo, o primeiro domingo. Cinco da manhã Cláudia despertou do sono e observou que a cama estava molhada. A seguir sua barriga começou a endurecer a intervalos mais ou menos semelhantes. Pegaram o fusca da família e foram para a maternidade. Demoraram um pouco porque nas duas primeiras maternidades que entraram não havia vagas. Finalmente foram admitidas na Maternidade Ana Neri. Não porque tivesse vagas, mas porque era a maternidade localizada no fim da linha do trem, última trincheira de esperança. Cláudia permaneceu internada e Adilson foi para a sala de espera da maternidade.

O trabalho de parto correu rapidamente e sem atropelos. Cláudia era durona. Tinha visto na TV que quando o bebê nasce de parto normal tem menos problemas para respirar e para sugar ao seio, além da recuperação da mãe ser muito mais rápida. Ao meio-dia o residente sênior do pré-parto informou que estava na hora. Às 12:13h Cláudia deu à luz o seu bebê. Ele chorou um pouco e foi logo recepcionado pelo pediatra de plantão que foi dar os primeiros cuidados.

— APGAR 7 e 9 — disse o pediatra para a mãe cinco minutos depois do nascimento.

— Que que é isso? APGAR?

— É a nota do bebê. No primeiro minuto ele estava meio flácido, com um choro fraquinho e reflexo meio apagado, mas depois da estimulação ele recuperou-se do choro e do reflexo. Ainda está meio molinho, mas está tudo bem.

Enquanto a mãe recebia os cuidados finais — retirada da placenta e sutura na episiotomia — na sala ao lado o bebê dava sinais de que não estava tão bem assim. Começou a apresentar gasping[1]. A flacidez muscular foi aumentando. O coração disparou. O pediatra solicitou imediatamente a transferência do recém-nascido para a UTI Neonatal com hipótese diagnóstica de Sepsis[2] Neonatal . A vaga na UTI demorou um pouco para sair — assim como as outras maternidades da metrópole, a UTI do Ana Neri também estava lotada. Projetada para 20 crianças, estava com 28. Enquanto a vaga não estava liberada, o pediatra intubou o recém-nascido que neste momento já não conseguia mais respirar espontaneamente e permaneceu em estreito monitoramento. Após vinte longos minutos, o recém-nascido em uma incubadora aquecida, intubado com oxigênio suplementar, foi transportado para a UTI Neonatal que ficava no mesmo andar do Centro Obstétrico, mas do outro lado. Atravessar o longo corredor era uma operação que exigia coordenação de toda a equipe. Finalmente na UTI, o bebê foi colocado em ventilação mecânica e iniciada a administração de antibióticos imediatamente.

Cláudia não soube de nada até ser levada para a enfermaria. A enfermeira-chefe — uma mulher sisuda, porém gentil — comunicou-lhe em poucas palavras que seu bebê tinha sofrido um problema respiratório ainda no Centro Obstétrico e foi conduzido para a UTI. A puérpera estupefata ficou desorientada. Grunhiu algo como “ele está bem?” mas não recebeu resposta. Sentiu solidão. Adilson ainda não tinha sido liberado para subir até a enfermaria.

Demorou cerca de uma hora até o marido de Cláudia conseguir autorização para subir até o quinto andar da maternidade. Ao sair do elevador foi primeiramente conduzido pela enfermeira-chefe até a porta da UTI Neonatal onde alguém falaria com ele. Confuso, sentou-se no sofá de alvenaria na porta da UTI. Alguns minutos depois um médico em roupas verdes, cabelo despenteado e com uma voz firme se apresentou.

Continuação: Demônios do Templo (2)

Notas:

[1] Gasping são movimentos respiratórios assincrônicos não efetivos. É um dos sintomas presentes em quadros de asfixia perinatal. [2] Sepsis é um termo que designa infecção generalizada.