Montenegro não tinha paz quando aquela dor batia em sua alma. Era uma dor no peito, uma angústia, um peso… já era tarde da noite quando decidia ligar para o colega Rivaldo. Era sempre assim. E a resposta do colega era quase sempre a mesma: “Vá descansar, Montenegro, isso passa”. E passava mesmo, com os dias, as atividades, o trabalho, a escola dos meninos, a esposa. E assim a vida seguia adiante, as idéias negativas iam abandonando aos poucos sua mente. Um dia uma psicóloga ou psiquiatra, já não se lembrava bem, havia dito algo sobre “depressão sazonal”, um tipo de tristeza profunda que atinge as pessoas em momentos específicos, apenas naquele momento do ano, por exemplo, como natal, aniversário da morte de alguém ou qualquer coisa que trouxesse à lembrança algo de muito triste.
Pois bem, esse algo muito triste de fato ocorrera muitos anos antes. Montenegro e Rivaldo eram cadetes na academia militar de uma das Forças Armadas. Não digo qual das três para que você não resolva investigar e encontrar meus personagens por aí, andando pelas ruas.
Havia um tenente instrutor da academia que era conhecido como “casca grossa”. De vez em quando dava a louca no homem, e ele resolvia maquinar algo de radical entre seus liderados. Haveria um treinamento para um grupo de alunos – algo que no meio militar é chamado de “teatro de operações”. O grupo seguiria para um local no meio do mato, onde acampariam por uns três dias. Num desses dias, aconteceu a “louca” no instrutor, que, diante de um dos exercícios, estabeleceu que todos os acampantes, ao completarem determinada manobra, deveriam dar um grito de “viva o diabo” e, em seguida, ofender a Deus, com pelo menos uma palavra de baixo calão – se é que existe alto ou moderado calão…
Rivaldo estava lá, assim como Montenegro. Eram ainda muito jovens. O primeiro deles, novo convertido e convicto que estava quanto à sua fé em Cristo, assentou no seu coração que não faria uma coisa daquela natureza. Montenegro, que havia sido criado em lar evangélico, tremeu nas bases, pois a punição não seria nada boa. Além dos tradicionais exercícios físicos extras – cada um mais puxado que o outro – haveria a humilhação, a exposição ao ridículo e demais torturas psicológicas que, na maioria das vezes, acompanham essas atividades. Além disso, o comandante da tropa deixara bem claro que quem não obedecesse àquela ordem passaria a noite se banhando num córrego de água muito fria, enquanto os colegas dormiriam em suas quase confortáveis barracas.
A decisão de Rivaldo fora tão radical quanto a ordem do instrutor. Não faria, e pronto! O mesmo não se deu com Montenegro, que entrou em pânico e luta interior diante de sua própria timidez, do desejo de não ser exposto e passar por tudo o que estava por vir. E assim se fez, de modo que cada um dos dois seguiu seu destino. E, como era de se esperar, Rivaldo pagou caro, pois fez a manobra com perfeição, mas recusou-se fazer qualquer declaração proposta pelo tenente.
À noite, o Montenegro, em sua tenda, não conseguia conciliar o sono. Já começara a sentir os primeiros efeitos de algo que parecia remorso. Queria estar lá, com Rivaldo, fazer parte da resistência, não ter negado o nome de Jesus. Que importava agora se tivesse de pagar dez, vinte, trinta, sei lá… que tivesse feito abdominais e barras extras, cangurus e sabe-se lá o que mais. Ele, que sempre aprendera sobre essas coisas de negar a fé, desde a mais tenra idade, sentia agora uma inveja incontida do sentimento de bravura demonstrado pelo colega, tão novo em sua vida cristã. E o que, a princípio, parecia um ligeiro mal-estar, foi começando a se tornar uma tortura em sua mente, seus sentimentos, suas mais profundas emoções. Ah, se pudesse voltar algumas horas daquele mesmo dia…
Os cadetes se formaram e hoje são oficiais da Força. Rivaldo e Montenegro foram recentemente promovidos ao posto de Major e, por acaso, voltaram a se ver depois de anos, devido ao fato de estarem na mesma cidade e trabalharem para a mesma organização militar.
Montenegro transformou-se no braço direito dos pastores e líderes de sua igreja, ministrando aulas em escola dominical, responsabilizando-se pelo departamento de finanças e se tornando o membro da comunidade que mais contribuía com ofertas, fossem elas missionárias ou para qualquer outro fim. Tinha mil atividades, até mesmo na vida fora da igreja, e era conhecido por todos como um homem honrado, um exemplo.
Mas, embora ninguém soubesse, a dor ainda estava lá, até que, naquele dia, foi forte demais. E, tarde da noite, na dúvida entre importunar ou não o amigo, acabou ligando. E ouviu a mesma resposta: “Vá descansar, Montenegro. Vá descansar… vá descansar…”. E, por incrível que possa parecer, descansou. Havia algo de diferente naquela voz, no jeito de falar, na maneira de tratar. Era uma voz suave, meiga, terna – será que era mesmo o Rivaldo? Uma paz interior entrou no lugar do que antes era pura dor e vergonha. A voz parecia ter um efeito curativo. Adormeceu o Montenegro e sonhou com a voz, aquela mesma voz a lhe dizer que descansasse. Algo de muito especial e diferente estava acontecendo, um milagre no seu íntimo, e eu, como narrador, me vejo limitado para compreender ou contar exatamente o que se passou ali. Acordou outra pessoa, pela primeira vez em muitos anos, e foi trabalhar. Tinha uma disposição diferente. Queria falar com o Rivaldo, mas, para surpresa sua, este não se encontrava. Tinha viajado com a família, três dias antes, e só voltaria na semana seguinte.
por Zazo, o Nego