A igreja pentecostal ficava no lado de lá do Guará II, perto do atual entroncamento do metrô, quando se vem do Guará I. Naquele tempo não havia o entroncamento, pois o metrô estava em construção. Para quem não conhece o Distrito Federal, o Guará é uma cidade daqui, que se divide em duas partes; Guará I e II. A igreja tradicional, por sua vez, reunia-se provisoriamente numa escola, no início do Guará I, visto estar seu prédio passando por reformas. Seu pastor presidente chamava-se Osmar. Aliás, nome muito parecido com o do pastor da outra, que atendia por Omar. Talvez aí esteja a origem do incidente que passamos a narrar.
Estavam as duas igrejas para realizar, cada uma por si, uma série de conferências. Eram grupos diferentes, igrejas que não se conheciam. Haveria um feriado na sexta-feira, e Omar havia conclamado sua membresia a não sair do DF por conta do “feriadão”. Por sugestão de um colega de Faculdade Teológica, estava convidando um pastor de Belo Horizonte, homem de Deus com um ministério de cura que poderia ser caracterizado como tremendo! Apenas por detalhe, na igreja à qual nos referimos, a pentecostal, a palavra “tremendo” não era usada por qualquer motivo. Haveria de ser algo inimaginável!
Acontece que Osmar, o tradicional, também estava para realizar com sua igreja uma série de pregações que se estenderiam pelo mesmo período: de sexta a domingo. O pastor convidado de Osmar também vinha de Belo Horizonte. Chamava-se Armando – mesmo nome do convidado pentecostal.
Chegou o dia. O voo de Armando, esclareça-se aqui, o pentecostal, era da Vasp. Uma promoção daquelas que a irmãzinha da agência de viagens aproveitara. O Armando tradicional vinha pela Varig. Ambos chegariam ao aeroporto de Brasília por volta das quatro ou cinco da tarde, na sexta-feira. Iriam para a casa de alguém das respectivas igrejas hospedeiras, conheceriam seus anfitriões, tomariam banho, fariam lanche, orariam e… iriam para a primeira noite da série.
Osmar, no rigor tradicional, chegou ao aeroporto exatamente às quatro da tarde. Como não conhecia Armando pessoalmente, trabalhava com as características que lhe haviam sido fornecidas. O pastor visitante era amigo de um amigo. E pela descrição deveria ser um sujeito magro e meio calvo que “zanzava” de um lugar para outro, como quem espera o anfitrião. Apenas parecia um pouco mais jovem do que o esperado, mas… estava com uma Bíblia na mão, tinha cara de crente, aliás, tinha cara até de pastor! Arriscou:
– Perdão, eu vejo que o senhor tem uma Bíblia nas mãos… acaso o senhor é evangélico?
– Sim – respondeu com presteza o interlocutor. – Sou pastor.
– Seu nome?
– Armando…
– Oh, graças a Deus! Eu sou o pastor Osmar. Vim exatamente recepcioná-lo.
– Oh… quanta honra. É… eu pensei que o irmão mandaria o diácono…
– Não, não, amado! Vim eu mesmo. Muito prazer. Seja bem-vindo à nossa capital federal…
– O prazer é todo meu – respondeu o pastor Armando.
– Vamos, vamos. O carro está logo ali, no estacionamento. Deixe que eu levo isto… como foi a viagem?
– Muito boa, graças a Deus. Eu gosto da Vasp.
– Vasp…?
E assim foram.
O diácono José Abreu, ovelha do pastor Omar, havia passado até ali um dia um tanto atabalhoado. Muita correria, um monte de coisas pra providenciar… a conta de luz da congregação em Planaltina ficara na mão dele; responsabilizara-se ainda pelas cópias da apostila do curso de casais – a xérox da igreja havia quebrado, e sobrara para ele a missão de ir a uma dessas copiadoras do Setor Comercial Sul, a fim de reproduzir cinquenta cópias de um volume de dez páginas. Isso porque o rapaz que trabalhava no escritório da igreja arrumara uma gripe fortíssima e não pudera vir trabalhar. Para ficar mais emocionante, a esposa do pastor Omar torcera o tornozelo, o que levara o pastor a correr com ela para o Hospital Geral Ortopédico, o HGO. Enfim, recaíra também sobre os ombros do José Abreu a responsabilidade de recepcionar o pastor Armando, de BH.
O problema era que, com o acúmulo de responsabilidades, estava o José Abreu atrasado em relação à chegada do voo da Vasp, que aconteceria por volta das quatro horas. Já eram quase cinco. Mas conseguiu sair da loja copiadora, pegar o Eixão e seguir direto até o balão do aeroporto, tudo isso antes de o engarrafamento começar. Chegou ao aeroporto às cinco horas, bem na hora em que chegava também um voo da Varig procedente de Belo Horizonte. Opa… o nosso convidado vinha de lá. Quem sabe o voo não estava atrasado… mas… era Vasp ou Varig…?
Dentro de alguns minutos, os passageiros da Varig procedentes de BH tiravam suas bagagens. Pego de surpresa e não conhecendo o visitante, o Zé havia tomado a iniciativa de escrever com pincel atômico o nome Armando precedido das letras “PR”, a fim de não haver dúvida. Foi tiro e queda. Em pouco tempo, uma figura simpática e sorridente se aproximava dizendo:
– Sou eu. Graça e paz.
Seguiram-se quebras de protocolos, abraços, sorrisos, versículos bíblicos e piadinhas de crente. O voo era da Varig. Varig…? Bom…! Vai ver era isso mesmo…
E assim se fez.
Armando sentia-se à vontade em pregar numa escola. Sua própria congregação havia usado instalações de colégios durante longos anos. Só agora alugara um salão um tanto amplo num bairro da periferia de BH. A reunião começou com um período de louvor que entremeava cânticos de Asaph Borba com hinos tradicionais. “Isso é bom”, pensava, “faz tempos que não ouço um hino tradicional…” Realmente, aqui pra nós, algumas igrejas pentecostais parecem ter perdido esse vínculo tão precioso da antologia musical cristã. Armando sentia-se bem com os hinos e com os cânticos.
Chegou a hora da pregação. Havia orado, preparado uma palavra sobre cura e iniciou com a saudação de praxe:
– Saúdo a santa e amada igreja com a paz do Senhor…
Os poucos que responderam “amém” o fizeram num volume de voz tão baixo que não deu pra ouvir direito. Humm… causou estranheza a Armando.
Enquanto isso, no outro lado do Guará, o pastor Omar iniciava a reunião com:
– Saúdo a santa e amada igreja com a paz do Senhor…
Seguiu-se um estrondoso “amém”. Humm… causou estranheza a Armando.
Mas seguiram-se também os cultos e, em cada um deles, ia ficando a impressão das igrejas, dos pastores anfitriões e dos pastores visitantes de que algo não estava batendo. Alguma coisa parecia inusitada, pra não dizer errada… Omar sentia que Armando era calmo demais, didático, analítico. Esperava uma palavra de “fogo e de poder”. Já o Osmar pensava o contrário quanto ao “seu” Armando. No início foi um choque para ambos. Frases como “o Espírito Santo de Deus está neste lugar” pareciam não produzir qualquer reação nos ouvintes de uma congregação. Enquanto isso, no outro lado da cidade, o grupo interrompia com interjeições evangélicas o tempo todo, quase desconcentrando o preletor.
Porém, à medida que o tempo passava, era intrigante ver como Deus estava usando a vida dos Armandos, tanto de um lado quanto de outro. Havia cura interior no Guará II; havia cura física no Guará I. Em uma igreja, entendia-se a importância da Palavra; em outra, tinha-se contato com o poder, fruto do amor do Pai. Tudo na medida, conforme a necessidade, no jeito de Deus, que sempre escreve certo. Um Armando daqui sentia-se bem por estar sendo usado por Deus na instrução do povo, que, nessa altura, já se interessava pelos segredos de Deus proferidos à luz da Palavra. Já o Armando de lá ganhara a confiança e a simpatia das pessoas, por ser instrumento de Deus na manifestação de seu poder, especialmente em curas, milagres, palavras de sabedoria e revelação.
Ninguém ousava dizer qualquer coisa. Talvez por medo de se gerar um constrangimento, talvez por timidez, talvez até por entender, pouco a pouco, que deveria ser assim. Mas uma coisa era certa: era fácil perceber, tanto numa parte quanto na outra, que o tal pastor Armando parecia diferente das descrições.
Se isso acontecia de parte da igreja, não era diferente com relação aos pastores convidados. Porém, no passar dos três dias, uma mudança parecia estar ocorrendo nos dois Armandos. O tradicional já falava uns “aleluias” de vez em quando, e o fazia com o coração cheio de gratidão ao Senhor; ao mesmo tempo, o pentecostal começava a economizar jargões e já não parecia fazer as antigas exigências de um “amém” após declarações que nem chamariam essa palavra.
Encerraram-se as pregações no domingo à noite. Haviam sido dias abençoados, embora cansativos. Os Armandos voltaram para Belo Horizonte, após calorosas despedidas. Viajaram no mesmo dia, cada um no seu voo. Omar e Osmar continuam suas vidas e seus ministérios. O diácono José Abreu tirou um dia de folga na segunda-feira, para descansar. O tornozelo da esposa do pastor Omar ficou bem, após sete dias enfaixado. Os Armandos de BH nunca se conheceram, embora fique a possibilidade de novos “enganos” em outras cidades do país. Talvez só se vejam na glória, onde as diferenças denominacionais terão sido totalmente superadas. Omar e Osmar, à semelhança de seus hóspedes, jamais se viram. Mas tudo indica que, a partir daquele fim de semana, eles tenham passado a olhar com mais amor e respeito para correntes teológicas que porventura fossem diferentes das suas. Talvez um dia se encontrem aqui na terra, num congresso missionário ou numa livraria evangélica. A igreja tradicional deixou de se reunir na escola, quando seu prédio ficou consertado. A Faculdade Teológica continua funcionando na Asa Norte. A Vasp sumiu; e a Varig foi comprada pela Gol.
O entroncamento entre Guará I e II mudou a fisionomia da divisão entre as duas partes. Quem passar de metrô por ali, vai perceber. Se isso acontecer com você, pense no Deus que escreve a história, fazendo unir em torno de seus propósitos O(s)mares, Armandos e Guarás.
por Zazo, o Nego