Porta-voz

Amigos, um dia desses fui à agência do Banco do Brasil aqui perto do escritório para depositar alguns milhões. Na conta de alguém, é claro, não na minha. De repente dou de cara com um velho amigo, dos tempos idos de Caterpillar, o Zé Newton. Um daqueles personagens que acho que só dá no Brasil. Um sujeito muito inteligente, articulado, comunicativo, agradável e cheio de histórias para contar. Tanto assim que durante muito tempo nosso passatempo predileto no horário de almoço era nos amontoar em volta dele para escutá-lo contar antigas peripécias. Falei algumas vezes a ele que seria muito interessante colocá-las em livro. Acho que ele nunca levou isso a sério.

Uma das melhores, que algumas vezes eu pedi que ele repetisse, era do tempo em que ele trabalhou como apontador de mão-de-obra numa grande construtora de Minas Gerais. Nessa época, a empreiteira construía uma estrada federal, do tipo Belém-Brasília. Solteiro, recém-saído do colegial, embarcou de cabeça na aventura, que o levava a ficar meses longe de casa, morando nos canteiros de obras junto com a peãozada. Como a maioria não sabia ler, quando as cartas das famílias chegavam, ficava todo mundo fazendo fila na beira da cama do Zé Newton para que ele as lesse para eles. Meu amigo percebeu que esta era uma boa maneira de conseguir simpatia e proteção, porque o ambiente era tenso e até perigoso. Imagine só, no meio do nada, sem telefone, sem qualquer chance de escapar de um tumulto que, para acontecer, não precisava muito. Lendo as cartas, o Zé se tornou uma espécie de “protegido” da galera toda.

Mas começou a surgir um problema. É que nem sempre as cartas eram só boas notícias. Ali vinha de tudo. Inclusive informações confidenciais e desairosas, desabonadoras, do tipo:

“Não precisa voltar mais aqui, seu canalha. Já estou morando com o Bastião.”

“Eu bem que te avisei para você parar de beber, pinguço de uma figa. Agora afogue sua mágoa na cachaça porque estou grávida do Fulano.”

E coisas pelo estilo. Zé Newton começou a ficar numa enrascada. Se ele lesse essas coisas em voz alta, corria o risco de se indispor com o destinatário, porque o exporia à vergonha coletiva. Mesmo que o fizesse em particular, não podia prever a reação dos elementos. Então tomou uma decisão, a que julgou mais sábia e “ética” dentro das circunstâncias: ia proceder a uma leve “tradução” das missivas. Quando chegava alguma notícia desse tipo, ele lia outra coisa no lugar. Por exemplo, no lugar de “fui embora para o Maranhão com o Chico Pingaiada” ele lia “fui visitar a tia Nica no Maranhão”. Onde se lia “Você reclamava do meu bafo, agora agüenta aí esse cheiro de homem em vorta de tu”, ele lascava um carinhoso “Sinto falta de você, meu cheirinho”. E assim por diante.

Deu certo. Ele ficou de bem com todo mundo e quando a obra acabou, eles se separaram e cada um voltou para a sua realidade dura, ele já estava longe e de pele salva. Esse Zé Newton era mesmo uma figura. Não é que eu esteja aprovando o que ele fazia, mas que era engraçado imaginar as cenas, isso era.

Aí, eis que estou lendo o livro do profeta Jeremias. Leitura que todo mundo deve fazer de quando em quando. E não tive como não me lembrar do meu amigo de outrora. Isso porque uma das coisas que mais revoltava o coração de Deus contra o seu povo rebelde era o fato de que se multiplicavam profetas que diziam coisas para o povo que Deus jamais tinha pensado em falar. Eles contavam “sonhos” que não tinham sido sonhados e faziam “revelações” que não tinham sido reveladas. E o povo, incauto, acreditava cegamente em tudo aquilo. Quando Jeremias começou a falar a verdade, em nome de Deus, eles fizeram de tudo para tirá-lo de circulação. Não queriam saber de ouvir as palavras duras que iam contra o seu status quo. O pecado estava bom e eles não tinham intenção nenhuma de deixá-lo. Pior do que isso, não queriam sequer serem incomodados por um estraga-prazeres, um dedo-duro divino que apontava para seus crimes, adultérios e idolatrias.

Jeremias determinou, em um acordo com seu Deus, que não ia mudar o discurso para agradar a platéia. Mesmo perdendo muito, inclusive emocional, física e financeiramente, ele preferia morrer a trocar as palavras de seu Deus. Fidelidade à causa do Senhor foi o seu lema. Os outros profetas não estavam nem aí. Para eles, inventar alguma coisa que Deus não falou ou torcer o que ele falou, era fichinha. Não ficavam nem vermelhos. Fidelidade aos seus próprios interesses foi o seu lema.

Do ponto de vista humano, eles se deram bem. Pelo menos até que as profecias duras de juízo e vingança de Deus contra o povo começaram a acontecer. Durante os mais de 20 anos que Jeremias anunciou o exílio babilônico que estava prestes a chegar, eles continuaram sossegadíssimos. A elite os paparicava, o rei os chamava para suas festas, estavam sempre na coluna social e sua mensagem era extremamente popular. Enquanto isso, Jeremias era jogado na cisterna, na masmorra, na cadeia. Foi ameaçado, intimidado, açoitado. Chorava de tristeza por saber a que fim tudo isso chegaria.

Uns, espertos. O outro, fiel. Uns, só queriam se dar bem. O outro, só queria cumprir seu ministério com dignidade. Uns, porta-vozes de si mesmos. O outro, porta-voz do Senhor dos céus.

Quem fala em nome de Deus não pode nem cogitar da possibilidade de mudar a mensagem no meio do caminho.

Mesmo que isso lhe custe a vida.