Aconteceu quase sem querer. Manhã de domingo, eu vinha de uma semana de intensivos tratamentos clínicos. Para os que não sabem da minha história recente, tive um câncer no intestino que os médicos classificaram como um “T3”. Justamente quando eu já estava quase que de malas prontas para participar do “Som do Céu”, evento realizado pela MPC, sob a presidência nacional do meu querido Marcelo Gualberto. Viajaríamos eu e o meu pessoal do grupo Céu na Boca. Depois dessa viagem, Doca (minha esposa, que também faz parte do grupo) e eu passaríamos por Brasília, nossa terra, onde ficaríamos uns três dias, e cairíamos no mundo de novo, só que, dessa vez, para a Guiné Bissau, em projeto missionário com a turma da Amide. Eu estava radiante e envolvido até a alma naquele momento, quando, de repente, dores fortíssimas me levaram ao Hospital Santa Lúcia, em caráter de extrema urgência. Em estado gravíssimo, fui submetido a tudo quanto é exame. Chegamos ao T3. A lógica dizia que eu não voltaria dali, e pessoas amadas, surgidas de tudo quanto é lugar, entraram em intensa oração a meu respeito.
Fiquei para contar a história.
Pois bem, naquela manhã de domingo, eu encerrava mais um ciclo de quimioterapia preventiva o qual acontecera durante a semana. Quase sem querer, liguei a televisão e dei de cara com uma reportagem que me chamou à atenção. Era sobre esporte e mostrava um menino que havia sofrido um problema quando bebê e tivera de amputar as duas pernas. Conseguia mover-se, agora, com a ajuda de uma prótese, literalmente – em visão grosseira – uma perna de pau; aliás, duas. E o pai dissera que o garoto iria ser bom de bola.
E não é que era mesmo? Superando as dificuldades impostas pela vida, o menino Marcos, talvez com onze ou doze anos, já se mostrava um craque. Ninguém diria, se não soubesse, que o rapazinho era usuário de duas próteses e que, de fato, não tinha as pernas. Inacreditável! Só que tinha um detalhe: era corintiano.
O sonho do guri era conhecer um jogador por quem acalentava uma admiração especial. Esse jogador era Nilmar, o mesmo que sofrera rompimento do ligamento cruzado anterior do joelho, numa partida contra o Palmeiras, pelo campeonato brasileiro, no ano anterior. Sabe-se que o craque vinha atuando pouco, pois sofreu nova contusão, em jogo contra o mesmo Palmeiras. Pois era esse o jogador que o jovenzinho queria tanto conhecer pessoalmente.
Foi aí que a equipe da reportagem preparou uma surpresa para o menino, levando-o ao treinamento de seu time do coração e proporcionando-lhe um encontro mais do que especial com o seu ídolo. No início, o pré-adolescente viu-se tímido, mas o atleta mostrou-se simpático e o fez sentir-se em casa. Logo, logo, os dois tocavam bola, riam e se divertiam à vontade. Achei bonita a cena, mas o que me marcou foi o final, quando o jogador disse que, pelo que conhecera do garoto e de sua história, nunca mais iria se esquecer dele. Disse que ele, o jogador, é quem se tornara fã do menino, cujas dificuldades eram muito maiores que as dele e cuja vida lhe servia agora de inspiração, de ânimo, força, garra e vontade de vencer.
Foi nesse momento que algo, vindo da parte do Céu, me invadiu o coração, e eu entrei em adoração. Percebi a mão de Deus naquela história, cujos personagens não fictícios traduziam em palavras e ações algo que não foi tirado do homem caído – o senso de solidariedade.
Deus entrou na fita, e eu não resisti às lágrimas, glorificando-o por aquele momento. E foi na emoção daquela hora que ousei fazer um pedido bem escondidinho, daqueles que a gente tem medo de confessar que fez, porque nem todos entendem: pedi que o improvável acontecesse e o Corinthians vencesse o São Paulo, em partida a acontecer no mesmo dia, pelo campeonato brasileiro. Não por mim, que não sou corintiano, nem pelo Corinthians, mas pelo menino Marcos.
Acontece que o Corinthians não andava de bem com a bola, e foi por isso que usei a palavra “improvável”. Candidato fortíssimo à zona de rebaixamento, o timão amargava uma campanha pior que a do meu clube, cujo nome nem vou escrever aqui. Ainda bem que não levo essas coisas de futebol tão a sério. Já o São Paulo vinha de uma seqüência quase irrepreensível e ocupava o topo da mídia futebolística havia um bom tempo. Líder pra lá de isolado na tabela de classificação, com enorme vantagem sobre o segundo colocado, quase com o título por antecipação, era o favorito, sem vestígio de dúvida. Qualquer pessoa de bom senso não apostaria uma ficha no rival.
Passou-se o dia, e, como fosse domingo, ainda que sob alguns efeitos da quimioterapia, resolvi que deveria ver meus irmãos, reunidos como igreja. Na verdade, quis ficar perto de casa e visitei, por idéia da Doca, a Terceira Batista do Plano Piloto, na Asa Norte, de onde guardamos boas recordações. O culto noturno seria especial, pois fazia parte das comemorações de aniversário de um grupo vocal feminino, o Kerygma, daquela igreja. Fui, participei, gostei, revi pessoas e glorifiquei a Deus por tudo o que aconteceu.
Depois de tudo, conversando em casa, lembrei-me da reportagem.
Qual não foi minha surpresa. Não é que o Corinthians venceu o São Paulo, por um a zero…? O gol foi de Betão, aos quarenta e um minutos do segundo tempo. O “Coringão” não vencia o São Paulo havia muitos anos, uma infinidade de dias, milhões de horas, zilhões de minutos e segundos que no coração curinga deveriam representar uma eternidade. O autor do gol, à semelhança deste que escreve, foi às lágrimas quando marcou. O craque Nilmar sequer jogara, pois ainda não havia superado totalmente seus problemas ortopédicos.
Por mais que um jogo não seja mais que um jogo e que logo se torne coisa do passado; por mais que a glória seja fútil e a alegria, fugaz… do fundo do coração, agradeci a Deus pela vitória do Corinthians, pois entendi que ela viera sob encomenda, tinha missão específica. O timão seguiu rumo ao rebaixamento, e o São Paulo continuou líder. Mas o garoto de seus onze ou doze anos devia estar sorrindo, em algum canto da imensa capital paulista. Pois quando pendura as chuteiras, após seu dia no jogo da vida, pendura também as próprias pernas, mas nunca a esperança.
por Zazo, o Nego