Coisas dessa vida tão cigana…

Nando e Binho não tinham sequer idéia de quando haviam se conhecido. Pelo fato de suas famílias serem vizinhas de frente, lá na Pavuna, bairro simples do Rio de Janeiro, a amizade surgiu naturalmente, talvez desde o tempo de bebês. O Rio dos anos 60 era um lugar em que as pessoas moravam por anos e anos no mesmo lugar, e a Pavuna era uma das últimas chances de se morar no antigo Estado da Guanabara. Depois dela, vinha a Baixada Fluminense, começando por São João do Meriti. Essa questão da moradia por longos anos, própria dos subúrbios, construía laços duradouros entre a pequena comunidade que ali se formava – com todas as suas vantagens e desvantagens. Os meninos jogavam futebol de golzinho na rua em finais de tarde, enquanto as meninas se juntavam para brincar de boneca e casinha, ao mesmo tempo em que os pais puxavam para fora de casa uma cadeira tipo de praia e ficavam ali a conversar com outros vizinhos adultos. Às vezes, juntavam-se meninos e meninas para uma brincadeira comum, como queimada, bandeirinha ou pique-pega. Havia os campeonatos de futebol de botão. Enfim, levava-se uma vida simples e boa, vista de um modo geral. Para os menores, poderíamos chamar de infância despreocupada.

Binho, na verdade, se chamava Flávio. Tinha esse apelido desde sempre, aquela coisa da infância, da associação de nomes com diminutivos, do “v” com o “b” – de Flávio para Flavinho, de Flavinho para Vinho, de Vinho para Binho, coisas da fonética a serviço de uma linguagem afetiva. Já o Nando nem precisa dizer. Costuma ser apelido de todo Fernando, embora seu nome fosse Luís Fernando.

Tiveram os dois amigos uma vida parecida. Estudavam na mesma escola, às vezes até na mesma turma, iam e voltavam juntos quase sempre, procuravam fazer as tarefas escolares em dupla. Pra não falar do golzinho e de outras brincadeiras de menino. Sempre juntos. Ah, havia também as pipas. Binho era forte nisso. Era bom de pipa e, com o tempo, aprendera a fazê-las ele próprio, ao invés de ter de comprá-las, como a maioria fazia. Soltar pipa é um hábito suburbano no Rio, momento em que várias delas sobem ao céu do bairro – alguns empinadores sobem nas lajes de suas casas para terem uma visão melhor de tudo. Há o momento do cruze, quando os papagaios (como alguns chamam) se engalfinham no ar, pra ver quem corta quem, quem corta e apara, qual das pipas vai cair avoada – é uma competição. Há quem fique adulto e continue soltando pipa, deixando até a mulher e os filhos recém-nascidos ao “Deus dará”.

Outra particularidade entre Binho e Nando era que ambos torciam pelo Fluminense. O pai de Flávio, flamenguista, não gostava. “Que droga!!!”, dizia ele, em tom meio sério, meio de brincadeira. “Fui trazer pro mundo um pó de arroz”. Pó de arroz, hoje chamado pelas mulheres de “creme facial”, era o apelido do Fluminense. O pai de Binho não gostava do Flu. Dizia que era time de maricas, de loiras do olho verde, de gente grã-fina. “Pobre tem que torcer pelo Flamengo”, argumentava ele.

Tudo isso foi infância comum para Nando e Binho. Até que um dia o Nando prestou concurso para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, que fica em Barbacena. Como havia se dedicado a esse concurso – o pai até lhe pagara um cursinho, na época famoso, em Cascadura, o garoto passou nos exames. Vieram novos testes, como exame médico, psicotécnico, aptidão física… passou em todos! O ano começou diferente, com a ida de Fernando para Barbacena. Tinham os dois amigos entre quinze e dezesseis anos.

Mantiveram contato, principalmente por cartas. A amizade continuava, apesar da distância. Na primeira vez em que o Nando apareceu, depois da “quarentena” do quartel, veio em trajes militares que chamavam à atenção. O uniforme externo da Escola Preparatória era algo de muito bonito, à semelhança de um terno. Era azul e levava gravata. O quepe lhe trazia ares de comandante de aeronave. Chique demais para o povo simples da Pavuna e, em especial para o Binho, que se orgulhava do amigo. Conversaram muito, o Nando contava tudo o que era novidade na vida do quartel. Estava entusiasmado e contagiava o amigo.

Passaram-se três anos, e Flávio também ingressou nas fileiras da Força Aérea… como soldado, para o serviço militar obrigatório. Ele não tinha vontade de ser militar, mas, com as dificuldades financeiras que sobrevieram em sua casa, acabou aceitando, já no tempo de sair da Força, uma proposta de fazer o curso de formação de cabos. Assim, poderia ficar mais um tempo com emprego, visto que as coisas não estavam lá muito fáceis para alguém como ele.

Foi nessa época, também, que o Binho conheceu Cássia. A garota era meio “avançada” para os padrões do soldado, que, por pura carência afetiva, envolveu-se emocionalmente com ela. Tiveram um filho, para tristeza dos pais do rapaz, que teve de assumir tão cedo na vida uma responsabilidade pesada em relação à idade que tinha. Nessas alturas, o curso de formação de cabos vinha a calhar. Pelo menos conseguiria ficar na Aeronáutica por mais alguns anos e, quem sabe, ajeitar as coisas. Construíram uma “meia-água” no quintal do pai e ficaram por ali mesmo. Uma coisa era certa para Binho: ele amava Cássia, queria tê-la por perto.

No ano seguinte, Fernando foi para a Academia da Força Aérea, em Pirassununga. Dizia ele que “agora era pra valer”, pois tinha o alvo de sair de lá como piloto da FAB, o que acabou acontecendo mesmo, quatro anos depois. Naqueles anos de ditadura, havia um glamour imenso em ser militar de carreira, coisa que talvez já não se perceba a olho nu, nos dias de hoje. Aos poucos, Fernando fizera amizades com colegas do Rio que moravam em bairros como o Méier, Vila Isabel, São Cristóvão e Leblon, áreas consideradas mais “nobres” do ponto de vista do poder aquisitivo. E foi no Leblon que conheceu Laura, irmã de um colega de academia. Os dois se identificaram, fizeram amizade, gostavam de estar juntos. Namoraram e se casaram. Quando o casamento aconteceu, Fernando era segundo-tenente. Mas não havia se esquecido do amigo de infância, de modo que o convidou a ser um de seus padrinhos.

O casamento foi chique. Pessoas grã-finas apareceram e, de certa forma, Binho e Cássia sentiram-se um tanto deslocados no Clube da Aeronáutica, lugar onde se realizara a festa. A verdade é que é muito difícil um cabo sentir-se à vontade entre oficiais. Isso pode atingir, de certa forma, também as esposas.

Fernando ainda se sentia amigo de Flávio, mas aos poucos ia percebendo que já não era como antes. Os assuntos entre os dois já beiravam a superficialidade. Binho sentia-se tímido quando algum colega de Nando se aproximava e puxava assunto. Havia certa distância geográfica entre eles – o Nando agora morava no Grajaú, mas a distância entre a Pavuna e o Grajaú parecia maior do que a existente entre o Rio e Barbacena.

Um dia resolveram os dois que iriam se encontrar – eles e as esposas. Luís Fernando queria voltar à Pavuna, seu lugar de origem que jamais negaria. Mostraria a Laura sua história, sua origem humilde, seu esforço para vencer e galgar novos degraus na vida. Isso faria com que ela entendesse mais sobre ele e poderia ser útil na criação dos filhos, que ainda não haviam chegado. Os pais do Nando não moravam mais ali. Tinham-se mudado para a Região dos Lagos. Já os pais do Binho tinham falecido. Então, encontraram-se na casa do amigo.

Cássia preparou uns salgadinhos, coisa simples como pão de queijo. Comprou umas coxinhas na padaria, levou Coca-Cola. A visita aconteceu, os dois amigos mataram saudades e pareceram voltar aos tempos de adolescência. Estavam felizes e falavam de tudo. Mas quando foram embora, a mulher do Flávio comentou que teria percebido um olhar meio que de desprezo emitido pela esposa do Fernando, em algum momento. Estava na cara que tudo aquilo não era o mundo dela, afinal era uma moça do Leblon…

De lá pra cá, Nando e Binho nunca mais se viram, não tiveram mais contato, embora tivessem trocado telefones. Mesmo hoje, quando é fácil encontrar velhos amigos pela internet, eles não conversam mais.

A mulher de Binho, anos depois daquele encontro, quis divórcio e levou o filho com ela. A carreira de cabo durou oito anos, após os quais, Flávio teve de sair da Força Aérea. Hoje vive sozinho, na mesma casa da Pavuna. Herdou do pai um velho fusca que ainda roda. A fabricação de pipas tornou-se seu único meio de vida, mas dá pra pagar as contas.

Nando hoje é o Coronel Luís Fernando. Conhece várias cidades do Brasil e do exterior onde morou ou fez cursos de interesse em sua carreira. Está decidindo se quer seguir como oficial-general ou se pede reserva remunerada, a aposentadoria dos militares.

Dizem, eu não sei, que um dia os dois teriam se visto no metrô, entre a estação do Flamengo e de Botafogo. Teriam percebido a presença um do outro no mesmo vagão, mas fingido que não viram. Afinal, o tempo é capaz de mudar os traços das pessoas.

Vez por outra, Flavinho pega o velho fusca do pai, dirige até à estação do metrô mais próxima e vai ao Maracanã, pra ver o Fluminense jogar.

por Zazo, o Nego