A Última Palavra

No dia do sepultamento do corpo de Seu Anastácio, aconteceu de tudo. Estamos no Distrito Federal. A igreja era em Sobradinho, satélite norte no mapa de Brasília, onde existe um cemitério; mas, por questões que não vêm ao caso explicar, o velório acontecia numa das capelas do Campo da Esperança, extremo sul do Plano Piloto, região central do DF.

O jovem Pastor Silmar ficara responsável por ministrar uma última palavra antes do enterro propriamente dito, procedimento que envolveria uma procissão cuja caminhada se estimava em torno de seus mil e duzentos metros. Isso na melhor das hipóteses, porque, nos dias em que vivemos, a especulação imobiliária já impõe também sua força entre os mortos de Brasília. Há quem deixe seus restos mortais em quadras nobres e há os “menos afortunados” do ponto de vista financeiro, cujos cadáveres ocupam setores de menor glamour e tímida visibilidade, longe do luxo e das luzes que também existem no assim chamado campo santo. Evidentemente, esse fator social pode fazer, conforme o caso, aumentar a caminhada dos entes, sejam eles queridos ou não.

Voltando ao mundo dos vivos, a preocupação legítima era de que, entre Sobradinho, local onde também morava o pastor, e a Rodoviária do Plano Piloto, considerada como “marco central” da cidade, lá se vão bem uns vinte e cinco quilômetros. De lá até o cemitério, mais uns sete. E olha que o enterro poderia ser feito no cemitério de Sobradinho – mas a família não queria. Sabendo das dificuldades que encontraria, o Pastor Silmar, logo que soube que o sepultamento seria às cinco da tarde, tratou de andar ligeiro, embora já não tivesse tanto tempo assim. Eram já quatro horas, e o horário de verão, além de enganar a todos nós, parece fazer o relógio correr mais depressa. Tinha passado por um dia um tanto complicado. Atendera algumas pessoas no gabinete, visitara outras, mal conseguira almoçar. Enfim, tratava de centrar-se no sepultamento do Anastácio. Vestiu seu terno preto, perfumou-se com Alfazema, calçou sapatos sem cadarço, deu ré pra tirar o carro da garagem e seguiu destino. No caminho, passou na casa do presbítero Oliveira, já velhinho, que o acompanharia. O presbítero, que sabia tocar acordeão, resolvera levar o seu – para, quem sabe, entoar uns cânticos no culto fúnebre. E embora o Pr. Silmar fosse de uma geração mais nova, que achava instrumentos sanfonados um tanto fora de moda, sentia uma admiração pelo presbítero, a quem considerava como um quase pai. Por isso, não dispensou sua companhia. E assim foram.

Mas a trilha a seguir tornou-se inóspita. Um acidente próximo ao Balão do Torto, envolvendo uma carreta e um fusca, tornava dura a tarefa de seguir viagem. A polícia colocara cones em duas faixas, deixando apenas uma como opção a quem passasse. Era um por um, fazer o quê…? O dia era quente, contrastando com os trajes do pastor, que, em meio às gotas de suor, começava a se perguntar por que a família do Seu Anastácio resolvera deixar a carcaça do homem no Plano Piloto, já que todo o mundo entre sua gente era de Sobradinho, onde existe um bom cemitério… por outro lado, reprimia tais pensamentos, julgados impróprios para a ocasião. O presbítero, percebendo a morosidade do trânsito, já pensava em ensaiar alguns acordes no instrumento, visto que andava um pouco enferrujado… mas não chegou a fazê-lo, mais pelo incômodo de tirá-lo da caixa do que pela falta de vontade de treinar.

Levou um tempo considerável passar por aquele gargalo no Balão do Torto. Difícil dizer quantos minutos, mas, com certeza, o suficiente para um bom prejuízo. Quando finalmente vislumbrou a Asa Norte diante de si, o pastor renovou as esperanças. Ainda dava tempo de chegar. Mas eis que, de repente, o ponteirinho da temperatura do radiador chegava às alturas. Misericórdia!!! Quisera ter uma garrafa de água pra jogar no reservatório, mas não tinha. A subida do ponteirinho assustava, de modo que teve medo de contornar a pista até chegar num posto de gasolina. Preferiu parar o carro ali mesmo onde estava, já no Eixão Norte, e andar até o lugar mais próximo onde pudesse encontrar água. Essa manobra lhe custaria uns bons minutos.

O problema era que, no Campo da Esperança, os últimos sepultamentos acontecem, no máximo, às cinco da tarde. Já estava muito perto disso quando esse novo problema surgira. Problema esse que, uma vez resolvido, deixaria nossos dois personagens em condições de continuar, o que acabou acontecendo. Só que o tráfego na cidade não ajudava. Na hora de fazer o retorno, o último da Asa Sul para sair de bem com a vida rumo ao cemitério, um novo engarrafamento acabava de se formar, e a dificuldade de “negociação” com outros motoristas forçaram nossos amigos a pegar outro retorno, bem adiante e fora de hora. Para encurtar a história, o pastor e o presbítero chegaram ao Campo lá pelas cinco e dez. O féretro já havia seguido sabe Deus para onde, e não houve a menor chance para os dois, fosse de pregar ou tocar sanfona.

Muitos anos mais tarde, Silmar se lembrava do fato. Dona Dinaildes, a viúva, havia encomendado para aquele momento um culto em que se ressaltassem as virtudes do defunto, palavras essas que caberiam ao então jovem pastor. O lugar tinha de ser o Campo da Esperança, por se julgar ser ali o mais apropriado para a placa “aqui jaz”. Decepcionada com a ausência do eclesiástico e sem tê-lo procurado ao menos uma vez, Dona Dinaildes acabara por afastar-se da igreja com a qual o casal contribuía com os dízimos e ofertas de altíssimo valor – afinal, não era justo que fosse tratada com tanto descaso. Com o passar dos anos, porém, alguns ocorridos vieram revelar que o Anastácio, embora na posição de principal investidor da igreja, tinha lá também seus rolos nos negócios e até mesmo na vida amorosa. E o pobre do Silmar, que ainda teria de elogiar um homem que mal conhecia, começava a entender que os engarrafamentos e a alta temperatura do radiador tinham seu lugar na história.

E, na luta interior por preservar o que de verdadeiro tivesse existido naquele dia fatídico, vestiu um terno preto, perfumou-se de alfazema, deu ré no carro e o tirou da garagem. Dirigiu-se à casa do presbítero Oliveira. Só o que queria era ouvir alguns hinos em seu acordeão velho e fora de moda, antes que fosse tarde demais.

por Zazo, o Nego