Leitor, venha comigo até o quintal de uma igreja na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, no último domingo de outubro de 1974. O lugar é grande. No final, já no fundo, há um banheiro de frente para a casa do zelador. Nélson havia entrado ali e, sem perceber, ficara trancado. É que as maçanetas da porta haviam soltado, e ninguém providenciara o conserto. No lugar delas, havia só o buraco. Então, quem fosse ali tinha de ter muito cuidado, pois, se a porta batesse, ficaria preso, o que acabou acontecendo com o rapaz. Eram sete e quinze da noite. Quando o Nélson deu fé da situação, suou frio. Aquele banheiro ficava longe da movimentação, e quase ninguém ia lá. O nervosismo até certo ponto natural se convertera numa desregulagem intestinal… e, para completar, a descarga do vaso, daquelas que a gente puxa a cordinha, não funcionava. Felizmente havia papel…
Constrangido, Nélson começou a pedir ajuda. Primeiro, de uma forma tímida; não queria chamar atenção, embora isso fosse necessário, de alguma forma. Depois, as tímidas batidas haviam se convertido em murros na porta. Nada. Ninguém ia lá, lembra? Podia ouvir o culto começando. Primeiro os cânticos, depois o conjunto que havia sido convidado, com suas guitarras elétricas, calças boca de sino e sapatos multicoloridos de três andares.
Era mês da mocidade na igreja, oportunidade de treinamento para os “meninos”, vistos na época como “a igreja de amanhã”. O LP “Se eu fosse contar”, dos Vencedores por Cristo, tinha sido lançado não havia muito tempo e estava fazendo o maior rebuliço. Rolava um clima de efervescência na juventude evangélica do Rio. Quem viveu aquela época sabe do que estou falando…
Mas, para quem não sabe, o mês da mocidade era de intensa atividade juvenil, momento em que a nova geração assumia papéis até então exclusivos de adultos: tornavam-se diáconos, faziam o “número especial”, dirigiam cultos de oração e até pregavam. E o Nélson estava escalado justamente para trazer a mensagem no último culto noturno daquele mês.
Isso mexera com o emocional do garoto, que pesquisara temas. Anotara coisas. O jovem queria algo diferente do que seus colegas estavam fazendo. Pensava em fazer algo “bárbaro”, usar seu senso de humor, levar as pessoas rirem um pouco, evocar assuntos populares, falar de futebol, usar gírias… tudo aquilo seria um choque, mas levaria a igreja a rever seu jeito de produzir as coisas. Era a chance dele, e isso gerava expectativa. Além do mais, o conjunto “Sonoros”, de Irajá, havia sido convidado para tocar, e a coisa toda seria uma festa!
Seria, se não fosse o pequeno-grande incidente no banheiro: deu sete horas da noite, e, para quem estava no salão de cultos da igreja, nem o cheiro do Nélson. Sete e quinze: nada…! Sete e vinte… nem sombra! Sete e meia! Hora de começar. Pastor Viana, que não atrasava um minuto, iniciou a programação. A congregação cantou três corinhos. Entraram os “Sonoros”, e nada de Nélson. Todo o mundo já havia notado a ausência dele. Os jovens e adolescentes se entreolhavam curiosos. Não eram os únicos. Do mais novo ao mais velho, não havia um que não desse uma olhadela para trás, as nucas já ameaçando uma epidemia de torcicolos. Mas o culto seguiu. O pastor tratou de colocar em prática o “Plano B”. A mensagem foi comunicada, mas não pela boca do Nélson…
De certa forma, nosso jovem quase pregador acabara fazendo diferente de seus colegas, mas não que o tivesse planejado daquela forma. Tenho para mim que aquele incidente mudou sua história de vida. Ele analisou a si mesmo, checou suas verdadeiras motivações e fez daquele banheiro o seu encontro com o Senhor. De tudo o que se passara em seus planos, convenhamos: faltara o principal. E o banheiro tornou-se o melhor lugar para essa reflexão, pois agora tinha todo o tempo do mundo, apesar do resultado prático do “nervosismo até certo ponto natural”.
Embora nunca tivéssemos falado sobre o assunto, sinto que ele nunca mais foi o mesmo. Por isso, Nélson, onde quer que você esteja, obrigado por nos fazer lembrar que não passamos de instrumentos e que o instrumentista é Deus; por nos levar a refletir num fato: mais importante que falar do Senhor é depender dele, mesmo que falemos com desempenho, sabedoria humana e carisma.
Quanto a você, leitor, obrigado por ter viajado comigo até um velho banheiro, no fundo do quintal de uma igreja da Ilha do Governador, Rio de Janeiro, no último domingo de outubro de 1974… quase ninguém ia lá, lembra?
por Zazo, o Nego