– Deus te abençoe! Vai com Deus!! Deus te acompanhe!!! – dizia aos gritos a voz rouca e entusiasmada do baleiro.
Gritava ele com todas as forças, esticava a boca e as pregas vocais para desejar tudo de bom a motoristas desconhecidos, ocupantes eventuais e passageiros daquele pedaço de chão em frente à Catedral Metropolitana de Brasília.
Do Parthenon Hotel até o Blue Tree, é necessário passar pela Esplanada dos Ministérios. Assim fazia a van que buscava o Dr. Alberto Bittencourt, hospedado no Parthenon, durante os três dias do congresso de cardiologia, realizado no luxuoso hotel Blue Tree. Alberto não estava sozinho. Vinha do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, com mais três colegas da área. O congresso de cardiologia devia ser o terceiro em nível nacional e envolvia inclusive médicos de outros países.
A abertura do evento acontecera no dia seguinte àquele em que o então deputado Roberto Jefferson abrira o verbo diante do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados a respeito de um esquema ao qual se deu mais tarde o nome de “mensalão”. Os colegas do Bittencourt comentavam a repercussão dos fatos enquanto o veículo passava em frente à Catedral. A voz do baleiro cortou o ar, atingindo de cheio quem por ali circulava.
– Deus te abençoe, Deus te acompanhe!!! – gritava ele.
Dr. Alberto ouviu… e ficou com aquilo martelando na cabeça. Nunca vira alguém tão sorridente desejando a todos que Deus os acompanhasse. Corria a quarta-feira, quinze de junho de 2005. No Blue Tree, os cardiologistas participavam de palestras e videoconferências, trocavam experiências e números de telefones. Mas, enquanto tudo aquilo acontecia, a voz do baleiro ficava ali, intacta no subconsciente de Alberto, a invadir-lhe portas e janelas da alma, à semelhança daquelas propagandas do tipo “compre batom, compre batom, compre batom…”, que não saem da mente. Que coisa curiosa, aquele sujeito com uma alegria tão espontânea, parece até que havia acertado na mega-sena ou coisa parecida. Muita alegria pra pouco motivo… nem dinheiro o pobre coitado tinha, devia viver dos doces que vendia, se é que conseguia vendê-los.
Veio o dia seguinte – o mesmo percurso, o mesmo carro, o mesmo motorista, e lá estava o homem. Dessa vez, o sinal fechado permitiu que Alberto observasse melhor a figura. Vendia balinhas, bombons feitos em casa, pirulitos e docinhos. Era, de fato, um homem simples, o cabelo desgrenhado, a barba por fazer, o rosto largo, um olho vivo… alguns motoristas, nos carros da primeira fila, compravam. Outros não. O bom humor inalterável do vendedor se revelava num sorriso convincente que adornava o rosto de leste a oeste. Vez por outra, alguém dizia que não ia comprar, mas a reação era a mesma: “Deus te acompanhe!!”, “Deus te abençoe!!!”. Às vezes, de um carro do outro lado da pista vinha um som de buzina saudando-o, já que o indivíduo se tornara uma espécie de “patrimônio cultural temporário” da Esplanada. Em resposta, o baleiro acenava alegremente e enchia o peito para gritar a mesma frase, de tal forma que o buzinante ouvisse. Parecia querido o homem por parte dos motoristas, a maioria composta de funcionários públicos da cena central brasiliense.
A organização do congresso programou um giro turístico pela cidade. Conheceriam a capital federal em seus principais pontos – Torre de TV, Câmara, Senado, residência oficial do Presidente, Memorial JK e outros. E assim foi. Alberto, porém, abriu mão do passeio. Verdade é que precisava colocar os pensamentos em ordem. Não estava bem emocionalmente, e a viagem ao Planalto Central não o fizera esquecer a crise pessoal que enfrentava. Embora a parte profissional andasse em ordem, vivia, por outro lado, em desacerto com a família: desentendimentos constantes com a esposa, insatisfação, ansiedade, a velha incompatibilidade de gênios e de propósitos, filhos entrando na adolescência, cheios de questionamentos, dúvidas, desafios e desafetos… Alberto perguntava a si mesmo se não estaria entrando num processo depressivo, resultado de cansaço e estresse. Precisava parar, parar, parar, pelo amor de Deus!!!
A voz do moço, porém, continuava a bater-lhe em algum canto da memória, dizendo “Deus te acompanhe…”.
Sexta-feira. O fórum terminaria ao meio-dia, com um grande almoço no Blue Tree. Os congressistas de Ribeirão Preto fariam o check out no Parthenon e já viriam com suas bagagens, pois, dali mesmo, o carro os levaria para o aeroporto, e eles voltariam à sua cidade logo depois das despedidas. Deu a louca no Alberto, e ele não quis almoçar. Em vez disso, pediu ao motorista da condução que o levasse até a Catedral. O motorista atendeu, ainda que sem entender.
Havia engarrafamento nos dois sentidos da Esplanada, por causa de uma manifestação que já era fruto das palavras de Roberto Jefferson. Pessoas se aglomeravam, caminhões de trio elétrico retumbavam discursos de correntes políticas em vozes revereberantes e sons ininteligíveis. Metade da pista da Esplanada dos Ministérios era tomada por manifestantes, estes sob o olhar atento de policiais. Alberto, nosso médico, não queria desistir. Enfrentou o engarrafamento e o calor daqueles típicos dias de seca no Distrito Federal. Ignorou a fome. Guardou no coração o desejo de ver o vendedor ambulante pela última vez, atribuindo a ele o melhor que a Capital da República produzira, mesmo que ninguém o soubesse. As palavras daquele homem simples haviam encontrado lugar no coração do cardiologista.
Não conseguiu mais vê-lo. Contentou-se, então, em guardar nas portinholas do emocional que, após o congresso de profissionais do coração, o seu começava a perceber que nem tudo estava perdido, talvez por conta de um simples “Deus te abençoe”. Voltou para casa sem ver pela última vez o dono da voz rouca que o deixara intrigado.
É que todo baleiro de verdade sabe que, em hora de almoço, dificilmente alguém come doces. Talvez por recomendação médica…
por Zazo, o Nego