Naquele tempo era assim: “Qualquer coisa, chame Seu Cardonázio o mais rápido possível!” “Seu Cardonázio expulsa demônio!”, dizia uma adolescente a outra. Era um tempo em que os adolescentes eram chamados na igreja de intermediários. Abaixo deles, em termos de idade, vinham os juniores; mais abaixo ainda, os primários; e, na base da pirâmide, os principiantes, que estudavam com uma revistinha chamada “Jóias de Cristo”. Era ali que eu estava, entre os principiantes. Então, todo principiante queria ser primário; o primário queria ser júnior; o júnior, intermediário. Tudo isso para querermos voltar tudo, depois de velho, ao percebermos a tardia sacação de Ataulfo Alves: “eu era feliz e não sabia”.
Naquela tarde, especificamente, uma intermediária dizia para outra que o Seu Cardonázio expulsava demônio… e eu ouvi, com os meus ouvidos principiantes, que ouviam, mas não discerniam. Aliás, aqueles ouvidos que nunca chegavam ao nível primário, só se lembravam da música. Nós, os principiantes, tínhamos de cantar algo assim: “Aqui no mundo branda luz, ó Deus, desejo ser / fiel reflexo de Jesus que mostra o Seu poder.” Eu cantava, nota por nota, mas não atinava no que aquilo queria dizer.
“Ele expulsa demônio, o coisa ruim”, dizia a menina. Depois de ouvir a idéia do “coisa ruim”, com a palavra “ruim” pronunciada como se fosse um monossílabo (que me perdoem os professores de gramática, mas é assim que o brasileiro fala, principalmente quando quer dizer que a coisa é “ruim” mesmo), percebi que o tal “coisa ruim” era o próprio diabo. Naqueles dias, não era tarefa fácil achar quem expulsasse demônio por aí, dando sopa, pelo menos entre nós. Também naqueles dias havia surgido na igreja um homem que só pregava sobre o bicho feio. A mulher dele era pianista, e ele cantava com entonação de tenor de ópera, daquelas vozes que enchem o salão. Mas a pregação do homem era estranha, só falava no bicho. O pastor, de vez em quando, dava oportunidade para alguns homens da igreja pregarem. Quando vinha aquele, xi… “lá vem!” E como soubesse encenar, pois devia ter trabalhado com artes cênicas, lia os textos de forma assustadoramente teatral. Meus amigos e eu nem dormíamos durante o sermão, quando ele pregava. Ficávamos ali, com os olhos estatelados, para depois tentar dormir numa noite de sobressaltos, só pensando no próprio, com medo até de uma roupa que secava inerte num varal improvisado…
Seu Cardonázio era sapateiro, morava longe, tinha que andar muito pra chegar ao barraquinho de madeirite onde vivia. Eu era principiante, talvez primário, já não tenho tanta certeza. Só sei que Seu Cardonázio tinha moral.
– Quando crescer, quero ser igual ao Seu Cardonázio. – dizia a adolescente, aliás, intermediária, à sua colega.
– Deus que me livre! – respondia a outra. – Sai fora, querer mexer com isso.
– Tu é boba, guria! Tem medo de tudo.
Quem estava ficando com medo, naquela altura, era eu, que, por ser bem mais novo, passava ali despercebido, a escutar – de enxerido – a conversa. Pintava na mente um quadro com Seu Cardonázio brandindo um rastelo, a digladiar-se com diabo, no meio da noite, suando… fui dormir pensando no Seu Cardonázio e no coisa ruim.
E acordo hoje, boas décadas depois, pensando nas mesmas demandas mentais que me embalaram o sonho principiante; imaginando que, possivelmente, Seu Cardonázio fosse um homem à frente de sua época, simplesmente por colocar em prática o evangelho de Marcos 16:17. Certamente, ele era um homem que havia compreendido a questão da autoridade no mundo espiritual, autoridade essa delegada pelo próprio Senhor Jesus. Não era pastor, nem diácono; não fazia parte dos notáveis, não tinha carro (só andava de bicicleta), talvez nem tivesse chegado ao ginasial e vivesse exclusivamente dos sapatos que consertava. Quão formosos são os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam a libertação em Jesus Cristo. Quão formosos devem ser também os caminhos trilhados pelos sapatos daqueles que tiveram a vida endireitada por esse homem simples que eu pouco conheci. Seu Cardonázio, diante da sua dignidade, eu ainda me sinto como um principiante, mas agora entendo o que significa ser um “fiel reflexo de Jesus que mostre o Seu poder”. Os sermões sobre o bicho feio um dia não serão mais ouvidos, pois “o Deus de paz em breve esmagará a Satanás debaixo de Seus pés.” Enquanto isso não acontece, que prevaleça a frase que marcou aquele momento: “Quando crescer, quero ser igual ao Seu Cardonázio.”
por Zazo, o Nego