III. O pecado e a Lei.
1. O nascer e o pôr-do-sol
Nossa tarefa tem sido compreender o significado das menções tarde e manhã, na finalização descritiva de cada dia na história da criação. Já falamos, anteriormente, das dificuldades na compreensão da unidade que se chamou “dia” no cenário da primeira semana: o desenvolvimento da narrativa se dá de tal maneira que, conforme se apresentam a escuridão e a claridade, a tarde e a normal”>noite e o dia); é preciso considerar, ainda, outro motivo – mais importante, conforme se verá nesta sessão: a ordenação de se contar os dias a partir do pôr-do-sol, só será instituída, bem depois da primeira semana – na páscoa do Egito, dentro de um conjunto de ações, com o fim específico de construir e separar Israel – como nação, reservando-o, para a entrega da Lei e a prática regulamentada do culto.
Por outro lado, se a intuição reconhece que o dia tem inicio pela manhã, nada seria mais natural que assumir o nascer-do-sol como marco de excelência no início na contagem dos dias. De fato, assim foi feito no passado, com o reforço de outras observações naturais – considerando a necessidade de se prever, e registrar, os principais eventos da agricultura, a programação das festas e as ocorrências da vida civil.
2. Intuição x Revelação
Tanto a intuição – de origem natural, como a páscoa – de origem revelada, necessitam do sol como marco de início na contagem dos dias: no primeiro caso em seu surgimento – pela manhã, e no segundo, em seu desaparecimento – à tarde. Agora se poderá, então, perguntar melhor: se o sol ainda não é visível no firmamento da primeira semana – e se a disposição de se contar os dias, iniciando-os no pôr-do-sol, só se aplica a partir da páscoa do Êxodo, como pode ser que, ainda assim, na história da criação, a tarde apareça no começo do dia – e não no final? E por que a manhã – ao ser citada depois da tarde, aparece finalizando, de alguma maneira, o dia – ao invés de ser colocada como segmento que dá início a ele?
O presente estudo considera que, em grande parte, as dificuldades de interpretação decorrem de um tratamento indistinto dos dias. O que se propõe, portanto, é que as descrições apontam para a existência de três tipos diferentes de “dia”: o dia que se reconhece pela intuição comum, associa o início do dia com o nascer-do-sol; o dia que se revela na páscoa, estabelece que o dia será iniciado no pôr-do-sol; e, por fim, o dia na primeira semana que, por sua vez, deve ser entendido, de alguma outra forma – diferentemente de ambos, já que, entre outras razões, não dá nenhum sinal de que se utiliza do sol para a identificação do início e fim do dia,
Antes, porém, de chegarmos propriamente à caracterização dos dias, precisamos ver de que maneira são eles descritos; como as descrições podem ser agrupadas; quais os contextos a que se relacionam e, principalmente, que elementos estruturantes podem ser identificados.
3. Grupos descritivos, temas e cenários
Agrupando-se descrições afins, se obtém, nos cinco livros da Lei, dois grupos descritivos distintos: no primeiro, a descrição dos dias enfatiza – através de repetições, os segmentos tarde e manhã[1]; e no segundo, as descrições não se utilizam das repetições dos segmentos tarde e manhã[2].
Verifica-se, que no primeiro grupo estão as narrativas que tratam do tema proximidade e favor de Deus; e no segundo, as narrativas que tratam do tema afastamento e desfavor. Os dois temas, proximidade/favor e afastamento/desfavor, serão apresentados, alternadamente, sob três cenários distintos, ocupando volumes de texto cada vez maiores: paraíso, exílio do paraíso e libertação;
4. Três sistemas coordenados
Associa cada um destes cenários a três sistemas[3] coordenados (SC) obtidos, cada um deles, pela interação de diferentes situações em relação ao pecado[4].
1) o paraíso (proximidade/favor) – no SC Criação, existe antes do pecado (Ø) e é isento de pecados (-);
2) o exílio do paraíso (afastamento/desfavor) – no SC Decriação[5] existe depois do pecado (), e é gerador de pecados (+); e, por último,
3)a libertação do Egito (proximidade/favor) – no SC Instrução, existe depois do pecado () e aponta para a isenção de pecados (-), no conhecimento da Lei e prática do culto.
5. O pecado, a morte e a Lei.
À luz da Carta aos Romanos distingue o pecado do paraíso dos demais pecados. Ainda que seja um pecado como qualquer outro, o primeiro pecado deve diferir dos demais porque, trazendo a morte[6], abala e transtorna o arranjo inicial da criação. Assim, descumprindo a primeira ordem de obediência, o primeiro pecado põe fim no SC Criação e desencadeia o SC Decriação, que vai gerar, sob a morte, os demais pecados. Produto de ações degenerativas, punitivas, ou reparadoras[7], o SC Decriação oferece, a partir do Dilúvio, o mundo físico que se pode conhecer, pessoalmente – através dos sentidos, ou – ainda melhor, pela investigação da ciência comum.
Por último, o SC Instrução, menor que os anteriores, se desenvolve dentro do SC Decriação, no cumprimento da eleição de Israel: iniciando-se no êxodo do Egito[8], o SC Instrução – no cenário da libertação, apresenta a segunda ordem de obediência – a Lei, à qual serão aferidos os demais pecados.
Depois de relacionar os contextos em que ocorrem as descrições dos dias, em Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio – de acordo com seus respectivos cenários e temas; e depois de identificar, também – neste mesmo conjunto de livros, a importância estrutural do pecado e a Lei, podemos seguir adiante, verificando como se diferenciam os dias – conforme o sistema a que se referem.
Notas:
[1] Gênesis 1, 5: Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
Gênesis 1, 8: Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Gênesis 1,13: Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia.
Gênesis 1,19: Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
Gênesis 1,23: Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.
Gênesis 1,31: Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.
Êxodo 16,12: Ao crepúsculo comereis carne, e pela manhã vos fartarei de pão;
Êxodo 16,13: À tarde subiram as codornizes e cobriram o acampamento; e pela manhã havia uma camada de orvalho ao redor do acampamento.
Levítico 24,3: Estará neste lugar diante de Iahweh, desde a tarde até a manhã;
Números 9,15: Desde o entardecer até a manhã, repousava sobre a habitação com o aspecto de fogo.
Deuteronômio 16,4: e da carne que tiveres sacrificado na tarde do primeiro dia nada deverá restar para a manhã seguinte.
[2] Gênesis 19,1: Ao anoitecer, quando dois anjos…
Gênesis 19,2: Descei à casa de vosso servo para aí passardes a noite e lavar-vos os pés; de manhã retomareis vosso caminho. (…) nós passaremos a noite na praça.
Gênesis 19,15: Raiando a aurora…
Gênesis 19,23: Quando o sol se erguia sobre a terra…
[3] As primeiras definições para “sistema” (Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1308) são: “Conjunto de elementos, materiais ou ideais, entre os quais se possa encontrar ou definir alguma relação; ou, disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como estrutura organizada: sistema penitenciário; sistema de refrigeração”. Para o nosso propósito, no estudo dos dias, este termo é especialmente significativo: é como se o texto bíblico delimitasse três “ambientes” separados – e de santidade progressiva, lidando cuidadosamente com cada um deles, evitando “misturar” o que é de um ambiente, com o que é pertencente a outro. Esta sistematização pode ser comparada com as três áreas relacionadas ao santuário, nas quais, em cada uma delas, se reunia pertences e dinâmicas que lhe eram próprias e específicas: uma, externa à primeira tenda; outra, a primeira tenda –chamada Santo; e, ainda outra, depois do segundo véu, na tenda chamada Santo dos Santos (Hebreus 9,2.3). Assim, o exílio do paraíso pode ser comparado ao ambiente externo à primeira tenda; a libertação do Egito, comparada ao Santo; e o paraíso – no fim da primeira semana, ao Santo dos Santos.
[4] Nessa estrutura de referência, como foram “as ruas e avenidas” no exemplo da teoria da relatividade (sessão 2), quatro situações serão possíveis em relação ao pecado: a primeira ordem de obediência – no paraíso, irá aferir duas situações iniciais: antes (Ø) e depois () dele; a Lei, tomada como segunda ordem de obediência, irá aferir duas outras menores: com pecados (+) ou sem pecados (-), conforme a isenção concedida pelo conhecimento, prática e perdão trazidos pela Lei. Estas quatro situações (Ø, , +, -) permitirão três entrelaçamentos diferentes (Ø -, +, -), ou três sistemas coordenados distintos.
[5] O termo decriação quer indicar, como na oposição que existe em formar e deformar, gerar e degenerar, ou montar e desmontar, o desarranjo natural vivido pela criação depois do pecado. Com relação ao perfil das mudanças que sobrevieram ao mundo criado, ver também Gênesis Um e a explosão da vitrine, disponível em http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/gen002.htm
[6] Sobre a associação do primeiro pecado com a morte ver também, Carta a Richard Dawkins, disponível em https://www.irmaos.com/almanaque/?id_coluna=2321
[7] Dentre as ações punitivas se poderia citar a expulsão do paraíso e, em seguida, seu desaparecimento físico; como ações degenerativas se poderia listar o envelhecimento e a morte; e dentre as reparadoras, a descendência instituída em Eva, juntamente com as demais alterações impostas ao mundo criado que, provavelmente, encontram eco na declaração de Paulo, em Romanos 8,20, ao dizer que a criação inteira foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu (…).
[8] Êxodo 12, 6 – 14: (…) e toda a assembléia da comunidade de Israel o imolará ao crepúsculo. Tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre os dois marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerem. Naquela noite, comerão a carne assada no fogo; com pães ázimos e ervas amargas a comerão. (…) Nada ficará dele até pela manhã; o que, porém, ficar até pela manhã, queimá-lo-eis no fogo. É assim que devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pés e vara na mão; comê-lo-eis às pressas: é uma páscoa para Iahweh. E naquela noite eu passarei pela terra do Egito e ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde homens até animais; e eu, Iahweh, farei justiça sobre todos os deuses do Egito. (…) Este dia será para vós um memorial, e o celebrareis como uma festa para Iahweh; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo.
por Jorge Luiz Sperandio