Carta a Richard Dawkins (5)

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A maternidade da mulher

Paulo diz que Deus, nosso Salvador, (…) quer que todos os homens sejam salvos [1], e também que Deus é o Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé [2]. Se existe uma salvação especial para aqueles que têm fé, fica claro que todos, homens e mulheres, independente de qualquer crença, já foram alvo de algum tipo de salvação. E que salvação seria essa – aplicada a todos, diferente daquela que vem pela fé – reservada para alguns?

Temos aprendido com o cristianismo que se trata da graça comum, estendida a todos. E em que consistiria tal graça, senão nascer e viver no mundo, e contemplar, como lembra Dawkins, a luz, as estrelas, as plantas, a vida, e os coros do amanhecer? Entretanto, como nascemos e viemos ao mundo? Pela maternidade da mulher, essa mesma que, bem conhecida pela medicina, precisa de água, de placenta, acontece na dor, em meio a riscos de morte, tribulação, envelhecimento, etc.

Um batismo de água na gravidez

A maneira incomum como Pedro descreve o dilúvio, é também significativa nesse trabalho de incluir a maternidade, como a conhecemos hoje, na história da salvação. Ele diz, “estranhamente”, que na arca poucas pessoas, isto é, (apenas) oito, foram salvas por meio da água [3] (é ela mesma Dawkins, a Arca de Noé! [4]). Isto é inicialmente tão esquisito quanto dizer que Ló foi salvo da destruição de Sodoma não pelo anjo que o tirou da cidade, mas pelo fogo que caiu sobre ela [5]. E que relação isto teria com a maternidade? Assim como os tripulantes da arca foram salvos pela água do dilúvio – que foi morte para muitos -e isso para a família de Noé foi um batismo de vida, também a tribulação da gravidez e do parto, na morte, num batismo de água, faculta o nascimento da vida. A mesma idéia é defendida também por Paulo, quando associa o batismo de água com livramento, tribulação e morte: na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés [6] – ou seja, o batismo de água, que franqueou a redenção de Israel, custou ao Egito tribulação e a morte.

Um batismo de sangue no parto

No processamento da vida, que acontece no pecado e na morte, a salvação demanda, também, como lembrou Dawkins citando a carta aos Hebreus, o derramamento, ou efusão, de sangue. Segundo a Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não há remissão [7]. Na carta aos Colossenses se diz que fomos circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem (derramamento de sangue), mas (pela) circuncisão de Cristo [8](derramamento de sangue), que, por sua vez declara: Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados [9]. E Paulo insiste nisso quando pergunta: Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte (derramamento de sangue) que fomos batizados? [10]

Pois bem, seja pelo trauma genital – que às vezes acontece – seja pelo desprendimento da placenta – que sempre acontece – nenhum dos filhos de Eva veio ao mundo sem derramar sangue. Ora, se a maternidade tivesse sido, de fato, obra da criação, porque haveria de derramar sangue? Instituída, neste caso, antes do pecado não precisaria perder sangue, já que não necessitaria de perdão. De outra forma, porque haveria de perder “vida” ou a “alma”, no parto, já que, segundo o mesmo livro de Gênesis, o sangue é a “alma” da vida; e em se tratando da humanidade, a vida que foi feita à imagem de Deus [11].

Um fato descrito no Evangelho sobre o nascimento de Jesus, parece atestar, com mais clareza, que o parto, que nos trouxe à vida, não deve ser produto da obra da criação: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor (…) e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos [12]. A Lei referida [13] trata da purificação da mulher depois do parto, quando um dos pombinhos deverá ser sacrificado para o holocausto e o outro em sacrifício pelo pecado fazendo o sacerdote, por ela, o rito de expiação e ela ficará (então) purificada [14]. Ora, Lucas não está falando do nascimento de qualquer um de nós, mas do próprio Jesus! Porque sua mãe deveria ficar purificada do pecado? Qual pecado? De origem sexual não era, já que o texto ressalta que nascera de uma virgem. Uma resposta imediata seria que Lucas enfatiza a observação do cumprimento da Lei pelos seus pais. Isto, provavelmente, deve ser verdadeiro. Mas a pergunta é: por que purificar-se depois do parto? De todos os partos, independentemente se foram frutos de adultério ou não? Porque a expiação pelo pecado do parto (!). Pior: a Lei coloca o parto na mesma lista de impurezas que inclui também a doença da pele, o mofo das casas, ou o corrimento de doenças sexualmente transmissíveis [15]. Se a gestação e o parto (como as outras doenças referidas) forem obras da criação, porque a necessidade da expiação, num sacrifício para o pecado? Será que a loucura de pedra é mais antiga do que imagina Dawkins?

Ou seja, a declaração acerca da maternidade em Gênesis 3, logo após o pecado, implica, necessariamente, na mudança do ordenamento reprodutivo instituído em Gênesis 1. Disse Deus à mulher: Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Se queremos coerência é preciso assumir que aquilo que Deus disse que iria ocorrer, de fato ocorreu; se queremos conseqüência, é preciso entender que o que veio a ser, a partir do que Ele disse, não existia antes que Ele tivesse dito; e se queremos consistência, é preciso admitir que: se o que veio a existir antes não existia, isto só pôde ocorrer através de mudanças que foram impostas ao ordenamento reprodutivo anterior. Como teria sido a geração de pessoas, antes do pecado, ou como seria a concepção, fora do pecado, provavelmente não se poderá mais que especular. Se temos tido dificuldade em entender o que nos fora dado a conhecer, na Escritura inteira, o que dizer daquilo que não coube expor na história da primeira semana?! O fato de a Escritura dizer que não havia morte antes do pecado também não nos autoriza a imaginar para o cenário que precede o pecado a mesma disposição atual da reprodução, “isentada” das características que, como vimos, se juntou posteriormente a ela.

Pois é, Dawkins, vontade de continuar não falta – mas a carta está ficando muito longa. Teríamos que falar, um pouco mais, também, do pecado e da primeira semana. De qualquer forma, acredito ter cumprido boa parte do objetivo inicial para esta exposição, considerando que, anteriormente, já pudemos tratar da concepção dos dias na criação [16] e do perfil das mudanças nos diversos momentos de sua história [17]. Antes de terminar, entretanto, gostaria de citar outra passagem do Novo Testamento que relaciona a maternidade com a salvação. Disse Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver o reino de Deus”. Perguntou-lhe então Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” “Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?” Jesus, então, respondeu-lhe: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus; o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito; não te admires de eu te haver dito: deveis nascer do alto” [18]. Um pouco antes [19], o mesmo evangelista diz que da plenitude (do Redentor) todos nós recebemos graça por graça (ou em outra tradução graça sobre graça[20]); assim, o edifício da salvação parece ser composto de dois andares: no primeiro – o da carne, se nasce pela água e pelo sangue a partir da maternidade de Eva; o segundo – o do alto, se “nasce” pelo Espírito, na salvação que se completa pela fé.

Gostaria de agradecê-lo, Dawkins, por esta oportunidade – trazida pelas coisas úteis do seu livro. Finalmente, agradeço a Deus pelo privilégio de poder comentá-lo.

Grande abraço,

Jorge Luiz Sperandio

Notas:

[1] 1Timóteo 2, 3. 4.

[2] 1Timóteo 4, 10.

[3] 1Pedro 3, 20.

[4] Deus, um Delírio: pp.425 e 426.

[5] Gênesis 19,16.

[6] 1Coríntios 10, 2.

[7] Hebreus 9, 22.

[8] Colossenses 2, 11.12.

[9] Mateus 26, 28.

[10] Romanos 6, 3.

[11] Gênesis 9, 4. 6.

[12] Lucas 2,22 – 24.

[13] Levítico 12, 1 – 8.

[14] Levítico 12, 8.

[15] Levítico 12 – 15.

[16] No ensaio Tarde e Manhã em Gênesis um, a partir do artigo Does the day begin in the evening or morning? de H.R. Stroes, se avalia que “as dificuldades de interpretação ainda existentes decorrem de um tratamento indistinto dos dias”, propondo, então, que os dias criativo, comum e cúltico sejam reconhecidos de maneiras diferentes. No dia comum, o dia-luz, composto pelas metades manhã e tarde, precede a noite; no dia cúltico, a seqüência se inverte, em relação ao dia comum, e a noite, “emoldurada” pelos crepúsculos da tarde e da manhã, precede o dia-luz; no dia criativo, por sua vez, se a noite deve ser entendida antes do dia-luz (no que lembra alguma semelhança com o dia cúltico), ele, entretanto, se distingue de ambos: difere do dia cúltico por que não tem a “moldura” dos crepúsculos e difere do dia comum porque inverte a seqüência das metades do dia-luz, colocando a tarde antes da manhã.

[17] No comentário do artigo de Jorge Pinheiro, Einstein e os caminhos da criação: a cosmogonia judaica e o conceito espaço-tempo em Gênesis um, se diz que “ao trazer para o estudo da primeira semana a noção física do espaço-tempo, o autor avança, em muito, no trabalho de buscar uma leitura mais justa e coerente do primeiro capítulo de Gênesis”, permitindo, entre outras coisas, “avaliar as mudanças que ocorreram durante a primeira semana, até o sexto dia, e seguiram acontecendo (posteriormente), até que surgisse o espaço-tempo vigente, formador dos dias atuais”; mudanças que, de outra natureza, “introduzem o que ainda não havia, ou mudam para o que ainda não existia”, deixando “reconhecer realidade no texto (ou seja,) a criação como fato e não mito (…)”.

[18] João 3, 3 – 7.

[19] João 1, 16.

[20] Bíblia de Jerusalém, nota “p”, p. 1986.

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por Jorge Luiz Sperandio