Amigos, acabo de assistir na TV à reportagem sobre a libertação de vários reféns das FARC, incluindo a desventurada Ingrid Betancourt. Essa moça viveu mais um capítulo da história horrorosa e covarde desses bandidos travestidos de guerrilheiros políticos. Sem entrar em detalhes sobre o que penso dessa gente, bem como de seus representantes do cenário da “luta de classes” assim chamada, que julga legítimo invadir propriedade alheia, cercear a liberdade das pessoas e torturar física e emocionalmente suas vítimas, creio que não se pode imaginar de que maneira Ingrid sairá da selva onde ficou por seis anos e nem tinha mais esperança de sair com vida.
Pode você imaginar o que é ficar seis anos dentro da mata, sendo humilhado, levado daqui para lá e de lá para cá, sem saber o que vai acontecer e sem nem saber se um dia você voltará à vida normal? Ouvi cada um dos reféns falando da sua alegria, da sensação indescritível de voltar à vida. Nunca, pela graça de Deus, passei nada nem perto do que esse pessoal passou, mas imagino que não havia nada pelo que eles mais ansiaram durante todo este tempo do que serem livres de novo. O cárcere, a escravidão, o seqüestro são, possivelmente, as formas mais odiosas de afrontar a dignidade humana. É uma violência ímpar, uma afronta irreparável. Porque nada, mas nada mesmo, poderá devolver o tempo que essa mulher passou na companhia completamente ignóbil dessa bandidagem cafajeste que a arrebatou. O tempo longe dos filhos, dos amigos, da carreira, nada disso volta mais. As marcas desta covardia ficarão para sempre.
Ainda há muita gente, centenas de pessoas, sofrendo isso neste momento. Ingrid não foi a última a ser liberta e outros ainda serão presos. Aliás, vai se saber em que bases o governo colombiano conseguiu negociar a libertação desses reféns. Afinal, se a ação foi assim tão bem sucedida, por que não aconteceu antes? De repente, de uma hora para outra, com toda aquela facilidade, o exército se infiltra, retira os reféns sem disparar um tiro e tudo acaba assim, com tanto heroísmo? Se foi assim mesmo, a Colômbia tem o melhor e mais preparado exército do mundo e as FARC estão com os dias contados.
Estas notícias demonstram a vileza do ser humano decaído e sem Deus, que cada dia mais vai perdendo as referências e se chafurdando na lama da impiedade. Porque se ser piedoso é ser “como Deus”, ser ímpio é ser “contra Deus”. É agir de forma oposta à maneira como Deus agiria. É fazer o contrário do que Deus faria. É sentir sensações que Deus não sentiria. É dizer coisas que Deus jamais diria. Por isso, todo e qualquer tipo de opressão, seja ela espiritual, nas regiões celestiais, seja nas relações humanas, em toda a face da Terra, como opressão social, econômica ou política, é impiedade. É contra Deus. Ofende ao Seu caráter, agride Sua santidade.
Lamento quando os filhos de Deus se omitem ou se escandalizam quando falo neste assunto. Fico impressionado de ouvir pessoas aparentemente esclarecidas achar que isto não tem a ver com espiritualidade. Somos tão “espirituais”, tão “piedosos”, tão “crentes”, que nos tornamos insensíveis ao clamor dos oprimidos. Temos sempre na ponta da língua as respostas: “Jesus nunca se preocupou com essas coisas”. “Nossa missão é outra”. “O crente não tem nada a ver com isso”. Será?
O interessante disso tudo é que nossa postura ideológica, mesmo dentro do Cristianismo, sempre dependeu do lado em que a gente está. No tempo em que os europeus ganhavam rios de dinheiro explorando o trabalho escravo dos negros africanos, ficou fácil até criar uma “teologia” que justificava esta prática. Havia pregadores que defendiam que o negro não tinha alma, que eles tinham a maldição da marca de Caim. Muita gente famosa da época, que veneramos hoje em dia, pensava assim. Mais recentemente, quando a economia dos países ricos passou a depender do consumo e da roda-viva do capitalismo para se manter, criou-se a “teologia da prosperidade”, que nada mais é do que a justificativa que alguns crentes consumistas precisavam para acumular riqueza para uso exclusivo. Até mesmo a classe média cristã já se armou de seus argumentos. Há algum tempo recebi um e-mail (desses que desocupados costumam mandar) dizendo que só é pobre quem quer ou quem não gosta de trabalhar. Você acha mesmo que todo mundo que enriqueceu “ajuntou à força do trabalho” (e, portanto, é abençoado por Deus) e todo mundo que é pobre é vagabundo, folgado e, portanto, é amaldiçoado por Deus? Estude a história das grandes fortunas, inclusive no Brasil, e você vai perceber que há outras explicações além do trabalho duro. Aliás, ninguém é racista nem elitista, até que alguém proponha cotas nas universidades. Aí a classe média, aquela do rei na barriga, fica azul de raiva. “Quer dizer que eu pago escola particular para os meus filhos e depois vem esses pobres dividir espaço com eles”. Até crentes falam isso. Isto é outra forma de dizer “Quero que essa gentalha se exploda. Não vou dividir o bolo de jeito nenhum”. Assim, a impiedade, a segregação e a injustiça social vão sendo justificadas e racionalizadas, de uma maneira ou de outra.
Poupem o seu tempo os que se levantarão para me dizer que a injustiça e a opressão são conseqüências do pecado. Já sei disso e não duvido. Não sou assim tão “secularizado”, como podem alguns imaginar. Claro que tudo isso é fruto do pecado. Claro que a impiedade é o resultado da escolha do ser humano em se afastar de Deus. Claro que o mal vai imperar aqui até que Jesus Cristo seja o Rei universal. Mas enquanto este dia não vem, se posso entender corretamente a minha Bíblia, Deus combate os maus multiplicando os bons. Ou deixou de valer a palavra de Cristo, de que os cristãos que se prezam são o sal da terra e a luz do mundo? Ou deixou de ser verdade que a presença da Igreja de Cristo no mundo preserva ainda um pouco a corrupção total e a falência absoluta das instituições?
Com todo o respeito que merecem aqueles que discordarão do que escrevo, não consigo entender como a piedade do Velho Testamento possa ter mudado no Novo. Acabo de ler o livro de Isaías, de ponta a ponta. Não há em todos os Profetas um que mais se refira ao Messias e ao seu reino milenar, onde novos céus e nova terra virão, nos quais habita justiça. Ele não deixa dúvida disso em momento algum. O profeta fala do Milênio como sendo a esperança maior e definitiva do seu povo. Nem por isso, no entanto, ele deixa de denunciar aqueles que “fazem leis injustas”, “que oprimem o pobre e a viúva”, “que ajuntam casa a casa, campo a campo, até que não haja espaço para mais ninguém na terra”. Estas coisas não estavam acontecendo do Reino de Jesus, mas no cotidiano do seu tempo. Sim, entendo perfeitamente que a dispensação era outra (sou dispensacionalista convicto), que a Aliança era outra, que o momento histórico era outro. Só não consigo entender que o Deus era outro. O Deus era o mesmo! Se ele usou os profetas para dizer que não aceitava uma espiritualidade baseada em cerimônias e atos religiosos, mas que lhe interessavam também os atos de justiça, previstos na sua Lei e que constavam também de que o justo devia ser a boca daqueles que não podiam falar por si mesmos, entendo que devo ser assim ainda hoje.
Fazer de conta que nada disso é com a gente é o caminho mais fácil. Alguns vão ler isso e dar de ombros. Outros farão comentários apimentados. Outros vão me dizer que use o espaço para dar mais estudo bíblico. Outros vão achar que sou uma ameaça à fé dos seus filhos.
Da minha parte, só quero encontrar um equilíbrio entre ser de Deus, com toda a ardente expectativa do futuro glorioso que me espera, mas não deixar de ser de Deus até este futuro chegar.