Funai espionou missionários na ditadura

Guardadas por mais de 30 anos numa sala da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Brasília, 92 caixas com documentos confidenciais produzidos por um braço do SNI (Serviço Nacional de Informações) no órgão foram finalmente liberadas a pesquisadores em meados de janeiro.

Os papéis demonstram a espionagem feita pelos órgãos de segurança sobre o grupo de padres e bispos que, em abril de 1972, sob o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), fundou o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica.

As centenas de telegramas, ofícios, relatórios de missão, análises e bilhetes manuscritos foram produzidas ou recebidas pela ASI (Assessoria de Segurança e Informações), que por duas décadas funcionou na Funai. A coordenação regional do Arquivo Nacional em Brasília, ligado à Casa Civil, recolheu os papéis em 2008.

O SNI montou uma extensa rede de espionagem na máquina estatal. Cada ministério contava com uma divisão de segurança e informações, enquanto fundações, autarquias, universidades e estatais tinham uma ASI. As unidades se relacionavam com a chefia central do SNI. O Arquivo Nacional já contou pelo menos 248 órgãos diferentes vinculados ao SNI. A Funai era um deles.

“Dossiê”

A partir de 1974, com o general Ernesto Geisel (1974-1979) na Presidência, a entrada e a atividade de missionários nas áreas indígenas foram monitoradas por uma rede de informações que começava no alto escalão da Funai, passava por delegados regionais dos órgãos e por capitães de postos indígenas e chegava aos índios, coagidos e interrogados sobre a presença dos padres, como indicam vários dos telegramas. Todos os documentos eram enviados à chefia da ASI em Brasília.

O “dossiê Cimi” compreende cerca de 2.000 páginas, incluindo cadernos de formação e textos produzidos pelo Cimi e que eram apreendidos pelos espiões tão logo distribuídos entre os índios.

Os militares acreditavam que o Cimi pregava o comunismo nas aldeias e queria “subverter” o controle do órgão sobre os índios. Os informes –alguns intitulados “atuação da esquerda clerical” ou “infiltração comunista e atuação de grupos religiosos”– serviram de base a inúmeras medidas da presidência da Funai contrárias aos missionários.

Na Funai, a figura relevante do período foi o controvertido general de Exército Ismarth de Araújo Oliveira, que presidiu a Funai entre 1974 e 1979 –o mais longevo da história do órgão. Hoje descrito por parte de antropólogos e indigenistas como defensor das causas indígenas, Ismarth aparece em telegramas e bilhetes ordenando vigilância, proibindo o acesso a terras indígenas e determinando medidas contra os padres.

Em 1978, Ismarth enviou carta confidencial ao general-de-brigada Francisco Batista Torres de Melo, comandante da Brigada Mista de Corumbá (MS), então responsável por uma extensa faixa territorial que ia de Goiás ao sul de Mato Grosso e na qual viviam populosas etnias indígenas acossadas por posseiros e colonos.

“A Funai está seriamente preocupada com o recrudescimento da atuação da ala esquerdista da igreja nas áreas indígenas de Mato Grosso, em particular nas que estão sob o controle das missões salesianas”, escreveu Ismarth.

Citando os bispos Pedro Casaldáliga e Tomás Balduíno, cofundadores do Cimi, Ismarth escreveu que a intenção “dessa ala esquerdista da igreja [é] usar o índio como instrumento, criando agitação em áreas que estão tranquilas”.

Ismarth sugeriu que fosse feita a “infiltração de um elemento da Brigada na área da Missão Salesiana de São Marcos [MT]. Para não despertar suspeitas, o mesmo portaria uma carteira funcional de servidor da Funai”.

Dias depois, o general respondeu que concordava com a infiltração e encomendou a missão secreta a uma seção do Exército em Aragarças (GO).

Localizado pela Folha em Fortaleza (CE), o general-de-divisão reformado Torres de Melo, 84, disse não se lembrar desses papéis. “Eu me dava bem com a igreja. Não me lembro de nenhum problema na época.” Entre 1974 e 1977, Melo comandou a Polícia Militar de São Paulo, na gestão do secretário de Segurança Pública Erasmo Dias.

Às vezes o general Ismarth usava seu poder de veto em simples retaliação às críticas públicas feitas pelos missionários contra o governo. Num bilhete de 1976, por exemplo, o general despachou no canto de um pedido de entrada de um padre a uma aldeia do Amazonas: “As críticas que o Cimi, por intermédio do padre Egydio [Schwade], vem fazendo ao governo e à Funai não permitem que o pedido seja atendido”.

Em outro bilhete, respondeu a um funcionário que queria saber se a Funai fora chamada para uma reunião com o Cimi: “A Funai não foi comunicada e mesmo que tivesse [sido], não participaria de reunião do Cimi, face as características de que as mesmas se revestem de ataques ao governo”.

Vigilância

Ismarth era sempre informado pela ASI sobre as ações do Cimi. Em resposta, disparava telegramas. Em março de 1978, orientou: “Esta presidência tomou conhecimento de que o padre [do Cimi] Dionísio Egon Heck dirigiu-se a esse Estado a fim de manter contatos com índios dessa região, seja para agitá-los, seja para participação [informá-los] sobre problemas no sul do país. Determinar a todos os PIs [postos indígenas] estreita vigilância, impedindo ingresso do mesmo a qualquer área. Em caso de recalcitrância, acionar autoridades”.

As perseguições da Funai se estendiam aos índios que aceitavam conversar com os missionários. Em 1976, ao ser informado de que a cúpula do Cimi estava reunida em Rio Branco (AC), Ismarth datilografou carta confidencial ao chefe da ASI. “A reunião está tendo caráter sigiloso e, apesar da vigilância da Funai, o Cimi conseguiu arrebanhar dois índios do rio Purus (…). Os órgãos de segurança: Polícia Federal, SNI e do próprio Estado estão atentos. (….) Ao término da reunião, será tentado deter os índios e conseguir que os mesmos informem os assuntos tratados e a orientação dada pelo Cimi.”