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Amigos, passada a alegria, quer dizer, o susto da queda e da catástrofe corintiana, retomo meu tema de antes.
Falemos agora um pouco sobre algumas palavras extremamente significativas para quem conhece a liberdade cristã. São termos que expressam valores, sentimentos e atitudes que permeiam a vida de quem já foi escravo e agora é livre. De quem conhece o lado obscuro da prisão, da chibata e do tronco. De quem já viveu para fazer a vontade dos outros, mas agora descobriu que o bacana mesmo é poder fazer a vontade de Deus.
Certamente existem outras, mas escolhi estas: cântico, júbilo, exultação e celebração.
Ah! O só referir estas palavras causa arrepios na espinha de muita gente. Dizem eles que estas coisas cheiram a uma conspiração contra a reverência e a santidade de Deus. Que estamos propondo a bagunça, a irreverência, o “liberou-geral”. Ficam de pé lá atrás cochichado à boca-pequena: “Onde isso vai parar? Estão descambando! Meu Deus do céu!” O que acontece é que Deus, para estes, é um ser sisudo, carrancudo, chato, de expressões graves. Não ouse ser muito ousado na presença dEle.
É verdade que tem gente que abusa. É fato que Deus é um fogo consumidor. Que ele é “três vezes Santo”, como alguns gostam de afirmar. É verdade que precisamos de temor e tremor para ficar diante dEle. Mas isto tem a ver com a pecaminosidade não tratada, com a sujeira não limpa, com a purificação não feita. A gente gosta de citar a visão de Isaías, quando o templo se encheu da glória do Senhor e um querubim tocou seus lábios com uma brasa viva. Só falta lembrar que tudo aquilo aconteceu para que o profeta fosse purificado a fim de pregar a um povo impuro. Sim, Deus é fogo consumidor, mas contra o pecado e a maldade. A respeito dos que são seus, ele os procura como a adoradores que têm “ousadia para entrar no Santo dos Santos pelo novo e vivo caminho que Jesus nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne” (Hb 10:19,20).
Lembramos da sarça ardendo e Moisés tirando as sandálias no deserto em sinal de reverência e do monte Sinai fumegando, enquanto Moisés se aproxima dele e o povo fica tremendo de medo aqui embaixo. Mas nos esquecemos (e para dizer a verdade, pouca gente tem a coragem de ler e ministrar neste texto que vou citar agora) que o mesmo Moisés dias antes foi quem puxou a fila do trenzinho que entoava o primeiro cântico registrado na Bíblia (Êxodo 15). Moisés fez a letra, sua irmã Miriã passou a mão num “tamborim, e todas as mulheres saíram atrás delas com tamborins e danças” (citação literal da versão ARA). Quem sai atrás do outro, forma uma fila. Um trenzinho, portanto. E olha que esta é a primeira menção da expressão “cântico” na Bíblia. Para aqueles que gostam da hermenêutica bem ajustada, diz-se que a primeira vez que uma palavra aparece na Bíblia deve ser estudada com atenção, porque terá muito a nos ensinar sobre o tema nas Escrituras como um todo. Então, observe em primeiro lugar que o primeiro cântico da Bíblia é uma canção entoada para celebrar a redenção do povo na presença de Deus. Israel cantava que estava livre do Egito, de seus cavalos e cavaleiros. Sua herança maldita tinha ficado para trás. Deus mesmo era o motivo e o cântico: “O Senhor é a minha força e o meu cântico” (v.2).
Um cântico é uma poesia musical. É interessante que, nas Escrituras, apenas os remidos aparecem cantando a Deus. Não se encontram anjos cantando. Algumas supostas menções usam a expressão “filhos de Deus” ou “filhos da alva”, mas há grande controvérsia entre os estudiosos se estas expressões de fato se referem a anjos ou não. Claro que isto não quer dizer que eles não o façam, mas é um pensamento revelador notar que Deus reservou a canção para que a gente cante a nossa liberdade e redenção. Por isso, CANTE MESMO.
Não sei de onde tiramos a idéia de que “a coisa mais importante de um culto é a mensagem pregada”. Esta idéia é falsa. Ela reforça um estilo e uma escola de gente que aprecia muito a exposição bíblica (estou entre eles), mas que quer apreciar isto em detrimento da canção do povo de Deus (estou fora deles). Há tempos que esta coisa me incomoda profundamente quando vou pregar em algum lugar. Depois do período de louvor, muitas vezes sou chamado ao púlpito e apresentado, na melhor das intenções, com a já citada expressão: “Agora vamos passar para a parte mais importante da nossa reunião, ouvindo a mensagem do nosso irmão…” No começo, achava normal, porque pensava isso mesmo. Hoje, fico pensando: mas se agora vamos para a parte mais importante, porque não eliminamos logo aquilo que é sem importância no culto? Assim a gente economizaria tempo e íamos logo ao que interessa.
Só que quando vou para os princípios do Novo Testamento, tão propalados e defendidos, mas também tão usados de acordo com a conveniência pessoal das opiniões dos “grandes ensinadores”, encontro Paulo afirmando, com peso apostólico (de apóstolo de verdade, não desses apostolados falsos e fraudulentos que existem por aí, assumidos ou não):
“Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina, este traz revelação, aquele outro língua, e ainda outro interpretação. Seja tudo feito para edificação” (I Co 14:26). Tudo deve servir para edificação, afirma o texto. Paulo não diz nem sugere de forma alguma que aquele que traz o salmo participa da parte “menos importante da reunião” e o que traz doutrina faz “a parte mais importante”. Tudo tem o mesmo peso. Tudo serve para edificação. De onde tiramos essa coisa esquisita?
“Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instrui-vos mutuamente e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vossos corações” (Colossenses 3:16). Incrível isso. A “palavra de Cristo”, historicamente interpretada entre nós como a exposição da palavra no culto, está sendo apresentada de fato através não de um sermão, ou pregação ou exposição da Bíblia, mas na forma de salmos, hinos e cânticos espirituais! Se ainda tem dúvida, leia a passagem correlata em Efésios 5:19: “Falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais”. Como sustentar diante de textos tão claros a infeliz tese de que “cantar é menos importante”?
Deus nos deu a canção como forma de expressão da nossa liberdade. Sabe-se há muito que você pode cantar quanto quiser sem que isto seja louvor genuíno ou adoração em espírito e em verdade, embora para sermos honestos, deveríamos assumir também que você pode discursar durante horas sem estar comunicando a “palavra de Cristo”. Quanta bobagem já fui obrigado a ouvir de supostos “pregadores” em supostas “mensagens”! Sabe-se também, há muito, que há outras formas de se louvar a Deus, além da canção. Mas a Bíblia garante um espaço muito especial para a canção dos remidos. Mesmo que o bando de talibãs que anda por aí dizendo que não se pode usar música na igreja, que não temos instrumentos no Novo Testamento em conexão com o culto cristão. Aliás, este é um absurdo hermenêutico e lingüístico, porque todo mundo sabe que a palavra “salmo” significa “canção acompanhada por instrumento de corda”. Está aí o instrumento que você achava que não havia na Bíblia. Mas não vou me alongar neste assunto, porque não tenho muito tempo a perder com gente que estuda a Bíblia para justificar suas teses européias e com elas escravizar os outros, ao invés de estudá-la para encontrar a vida na Verdade que liberta.
Cante. Cantar é uma dádiva de Deus para celebrarmos a Sua presença, a Sua vida, a Sua doce liberdade. O cântico é a expressão que vem da alma do artista. Aquelas pessoas talentosas e sensíveis o suficiente para colocar em palavras tanta coisa que a gente queria dizer para Deus e sobre Deus, mas não conseguia.
Dou graças a Deus por gente que faz isso para mim, desde o tempo dos salmistas israelitas, passando pelos compositores clássicos de hinos e chegando aos compositores contemporâneos que usam sua capacidade para nos municiar em nossas celebrações.
Daqui a pouco, vamos falar de júbilo.