Leia antes: Corpus Christi (1)
Amigos, a segunda coisa que me impressionou nesta pesquisa sobre o Corpus Christi católico, é a já citada estranheza em relação àquilo que chamei de “o símbolo do símbolo”. Quer dizer, de repente a essência da Eucaristia, lembrar do corpo e do sangue de Cristo, seu sacrifício vicário, fica de lado e aparece no cenário religioso uma festa, baseada em uma “particular elucidação”, com força e peso de doutrina, no seio do catolicismo.
Fato é que, em relação ao catolicismo, isto não é de se estranhar. Mesmo porque todos sabem que o catolicismo assume, abertamente, que sua regra de fé prática não aceita o Sola Scriptura, isto é, apenas as Escrituras. Para eles, as Escrituras têm o mesmo peso da Tradição da igreja. Com o perdão do trocadilho, ao invés de Sola Sciptura, os amigos católicos preferiram o “sola na Scriptura”, preferindo até mais a Tradição do que a Bíblia. Os chamados “Protestantes” são assim cognominados exatamente por levantaram o brado da reforma, chamando a Igreja para voltar apenas e tão somente para a Bíblia como autoridade máxima para sua vida.
Se não no mérito, uma vez que a tradição católica é usada para tentar justificar práticas frontalmente contrárias às Escrituras, pelo menos na forma os romanistas são mais honestos. Eles assumem que a tradição para eles tem o valor, o status e a autoridade de revelação bíblica. Os evangélicos, não. No afã de tentar justificar toda e qualquer prática na igreja pela Palavra de Deus, volta e meia alguns grupos e ensinadores acabam tentando forçar a Bíblia para concordar com o que eles pensam. Ao invés de assumir que estão fazendo algo sobre o qual a Bíblia simplesmente não se manifesta claramente (e, portanto, deixa em liberdade para que, nesses casos, cada um faça o que entende como melhor para o Reino no seu contexto), acabam criando casuísmos desnecessários.
No caso em questão, a Ceia do Senhor, acabamos criando tanta celeuma em torno dos detalhes, que nos esquecemos da essência. À semelhança do Corpus Christi católico, criamos a festa da festa. Ficamos mais interessados em discutir o rito do que em comemorar o que representa o rito. Dou alguns exemplos.
- Há igrejas onde a Ceia só pode ser celebrada e os elementos distribuídos na presença de um ministro ordenado, seja um pastor, bispo, presbítero ou missionário. É comum em igrejas distantes dos grandes centros ou nas chamadas “congregações” ouvirmos expressões como “hoje o pastor (ou missionário) veio aqui para dar a Ceia”, ou “hoje à noite o pastor (ou presbítero ou missionário) precisa levar a Ceia na congregação tal”. De onde tiramos isso, senão dos manuais oficiais ou tácitos dos movimentos ou denominações evangélicos? Isto é tradição.
- Citei no rodapé do primeiro artigo a “neura” de alguns em relação ao dia certo ou à periodicidade certa. Alguns afirmam ser “claro” o ensino “bíblico” de que a Ceia só pode ser celebrada aos domingos e que obrigatoriamente precisa ser celebrada todos os domingos. Porém, não encontram um único versículo que exige isso. Os textos que se usam para “provar” a tese são interpretados por inferência, o que não é uma base hermenêutica sólida. Se começarmos a entrar nesta seara, logo vamos ter que exigir, na mesma base, que a Ceia seja celebrada somente à noite, já que “ceia” é uma refeição noturna e Atos 20 narra uma reunião que aconteceu à noite! Observe como as tradições surgem e para quão longe do alvo elas podem nos levar. Isto é tradição.
- A definição de “Ceia do Senhor” de I Coríntios 11 e na própria narrativa dos Evangelhos sobre a sua instituição resume-se a comer o pão e beber o vinho. Nenhuma menção há de hinos, leituras, pensamentos, períodos de meditação. Quando o Senhor instituiu a Ceia, foi somente estes atos de dar graças e participar dos emblemas que constituíram o rito. As palavras usadas para definir a Ceia são: recordação, comunhão e proclamação. Lembramos de Cristo, expressamos nossa comunhão com ele e com nossos irmãos e anunciamos a morte do Senhor até que ele venha. Portanto, “celebrar a Ceia” é apenas comer o pão e beber o vinho. De que maneira, em que momento, em que horário isso vai ser feito, é absolutamente secundário. Diz-se, por exemplo, que a igreja primitiva costuma celebrar a Ceia do Senhor todos os dias, após as refeições. Não existe nenhuma regulamentação ou exigência no sentido de que seja obrigatório celebrar a Ceia numa reunião em separado, exclusivamente para este fim. Isto é tradição.
- Há apenas 2 (dois) símbolos instituídos pelo Senhor para lembrarmos dele: o pão, representando o corpo (tanto o físico como o místico, que é a Igreja) e o vinho, representando seu sangue, ou seja, sua vida dada na Cruz. Vejo com estranheza quando alguns querem insistir em picuinhas, tais como exigir pão sem fermento ou cálice único (um só cálice do qual todos os participantes, independentemente do tamanho da igreja, são obrigados a partilhar), como se o recipiente fosse símbolo da unidade do Corpo ou porque o fermento simboliza o pecado. Tais tipologias, em conexão com a Ceia, carecem de embasamento bíblico. O símbolo é o vinho, não o cálice. Quando queremos acrescentar mais do que já está posto, criamos símbolo de símbolo. Assim nos assemelhamos aos católicos celebrando o Corpus Christi. Isto é tradição.
- Já houve, e ainda há, brigas homéricas por conta de se usar vinho ou suco de uva. Reuniões de obreiros e pastores já testemunharam o “pau quebrar” por causa disso. Já ouvi quem dissesse que se não for vinho fermentado, não é a Ceia que se está celebrando. E sacam os dicionários de grego. E citam Santo Agostinho e os pais da Igreja. (Benza Deus! Que Ele levante o seu rosto sobre nós!) Isto é tradição.
Insisto que estas tradições não são necessariamente erradas ou anti-bíblicas. Não é este o ponto. Se uma igreja deseja celebrar a ceia todos os domingos de manhã, com pão sem fermento ou com fermento, com um cálice só para 1000 pessoas ou com individuais, numa reunião em separado ou no meio da Escola Dominical, ela não está errada. O que está errado é:
- a) não reconhecer que esta é uma prática baseada na sua tradição, já que a Bíblia não exige em ponto algum que as coisas sejam feitas desta ou daquela forma;
b) forçar textos bíblicos para elevar ao peso de doutrina aquilo que é apenas e tão somente uma maneira particular de ver e fazer estas coisas;
c) exigir que todos façam da mesma maneira que esta igreja;
d) julgar-se “mais bíblica” do que as outras que fazem de outra forma.
e) perder-se na discussão das periferias, enquanto se esquece a essência, o valor intrínseco, a beleza ampla da celebração do sacrifício de Cristo, em detrimento de discussões secundárias.
f) fechar-se completamente para outras formas de culto, que poderiam ser mais apropriadas ao contexto histórico e social onde a igreja está inserida.
Acho interessante que, ao questionar estas coisas, a gente seja encarado como um herege. Achamos normal criticar os que celebram o Corpus Christi baseados na tradição católico-romana, mas julgamos absurdo e abusado criticar nossas próprias celebrações baseadas na tradição reformada, seja ela denominacional, interdenominacional ou livre.
Que, então, se acenda o fogo da Inquisição. Já sinto o crepitar das brasas…