Amigos, minha janela se abre para as palmeiras do meu condomínio. Seus galhos robustos estendem-se altaneiramente para todos os lados, propiciando uma convidativa pausa para descanso na sua sombra aprazível. Abandonado o arroubo poético de que fui acometido no início de texto, o fato é que tem havido pouca chance de desfrutar de sombra debaixo desse mar de água que assola o país de norte a sul, menos o Nordeste (segundo meu amigo Juber, de Mossoró). Nos raros e breves momentos de estiagem, passamos a observar um movimento curioso.
Nosso condomínio é habitação, além das quase 200 famílias que moram nos apartamentos, de um sem-número de rolinhas que nos procuram para ali estabelecerem seus clãs e tocarem a vida. Pela manhã já é possível vê-las voando com gravetos no bico, a construir seus ninhos. Elas gostam das árvores, dos lugares ocultos e até dos beirais das janelas de apartamentos vazios. E amam os galhos de palmeiras.
Tudo funciona espetacularmente bem. Em algumas horas, o ninho está montado, elas põem os ovos e saem em busca de alimento. O que tem tudo para virar um lindo poema de exaltação ao ciclo da vida, para que minha amiga Thaíse publique com maestria em seu blog, de repente depara-se com a tragédia, observada atentamente por minha filha Carolina: chegam ventos impetuosos, alijando da suposta segurança os frágeis invólucros. Resultado prático: o chão vira uma omelete de candidatos a pombinhos. Esta história não teve um final feliz. Desculpem.
O mais intrigante é que no dia seguinte, Dona Rolinha volta à carga. Praticamente no mesmo lugar, ela recomeça a montagem, retoma o vai-e-vem de gravetos, põe novos ovos e aguarda. Agora vai, diria Rubinho Barrichelo. Mas não vai. Venta muito por aqui e lá se vão os novos roliços ovinhos para o chão. Pobre zelador. Fica o dia inteiro limpando dejetos ovíparos inexoravelmente estraçalhados pelo peremptório poder da lei da gravidade. Isto tem se repetido sem parar, desde que mudei para este lugar.
Levo meu leitor a uma reflexão. Seria a atitude da rolinha algo a ser copiado ou algo a ser criticado? Haverá uma linha tênue entre a persistência e a teimosia, a determinação e a burrice, a disposição e o devaneio? Dou um desconto. Rolinhas não pensam. Não raciocinam, não ponderam. Agem pelo instinto. Quando acordam de manhã, seu universo se resume a voar em busca de galhos e palha seca, tecê-los engenhosamente, botar ovos e esperar pelo nascimento de pimpolhos. Não é esperado que eles façam análise de riscos. É esperado apenas que botem.
Por mim, eu teria mudado de lugar. Depois de perder 3 ovos pelo mesmo motivo, já teria dado para perceber que a estratégia não era adequada. Mudaria de árvore, mudaria de condomínio, procuraria alternativas. Investigaria novas possibilidades. Não é o caso da dita cuja.
Como também não é o nosso caso, muitas vezes. Embora, diferentemente das rolinhas, temos a faculdade de discernimento, de análise, de escolha. Mas não é raro agirmos, como dizemos, “sem pensar”.
Lembro-me de uma secretária que tive. Namorava um sujeito movido a ciúmes e violência. O camarada ligava 5 vezes antes de ela chegar ao trabalho e 5 depois que saía, para controlar os horários da menina. Ele a agrediu uma vez e ameaçou outras tantas. Um dia, ela me perguntou se eu achava que ela devia se casar com ele. Eu disse, com o devido cuidado pastoral que o caso exigia: “se você tivesse juízo, não teria nem começado a namorar, que dirá casar. Quer levar uma bifa por dia a troco de quê?”. Ed René Kivitz conta episódio semelhante em seu livro Outra espiritualidade. Ele fala de uma moça que o procurou dizendo que seu noivo batia nela, mas que ambos se amavam. Deviam casar-se? Ed respondeu: “só se você estiver disposta a apanhar a vida inteira”. Se você sabe que o ninho cai a cada vento, para quê insistir?
É o caso daqueles cristãos que iniciam relacionamentos com não-cristãos e acham que isso não tem nada a ver. Afinal, argumentam, quantos são aqueles que começaram assim, num flagrante ato de desobediência à Palavra de Deus, mas depois o(a) outro(a) converteu-se? É um caso típico de rolinice (Def.: ato ou efeito de agir como rolinhas): porque um dia alguém conseguiu chocar seu ovo pendurado no coqueiro, vou fazer meu ninho aqui mesmo. Se fazendo a coisa com o máximo de cuidado, oração, bom-senso e planejamento, estamos sujeitos a ser colhidos pelo imponderável, quanto mais agindo por instinto! Tem tragédia que é mais anunciada do que os horários das próximas reuniões.
Então vêm aqueles mais espirituais, aqueles que não apenas abandonaram este mundo, como já são até de outro planeta. Estes advogam a tese de que a fé não segue a lógica. Para testar nossa fé, dizem eles, Deus nos pede coisas absurdas. Por exemplo: era um absurdo Noé construir uma arca daquele tamanho, estando a quase 1000 Km do mar. E eu, aqui do cantinho da minha fé imberbe, fico pensando: bem, acho que no caso aí, absurdo era NÃO construir uma arca e morrer afogado. Não sei se Deus nos pede coisas absurdas. Não me lembro de Ele ter feito isso comigo. Lembro-me de coisas absurdas que eu fiz na vida. No entanto, se isso acontecer com você e você tiver certeza absoluta de que é Ele mesmo que está lhe pedindo, faça sem hesitar. Quem sou eu para dizer para você não fazer o que Deus mandou? Antes, porém, verifique bem se é Deus ou se é a sua cabeça-oca-de-rolinha que está doida para fazer besteira e colocar a culpa em alguém.
Estou aberto a outras interpretações, que certamente virão da parte dos meus cuidadosos e atentos leitores. E já que a Parábola da Rolinha não levará ninguém para o céu ou para o inferno, é cabível outra exegese do texto. Elas se dividirão entre os poucos “insensíveis e pragmáticos” que pensam como eu – assim denominados pela outra parte – e aqueles que vêem na atitude das rolinhas uma incrível determinação e capacidade para começar tudo de novo. É como a história daquela corredora olímpica de anos atrás, que cruzou a linha de chegada trançando as pernas, toda torta e foi aplaudida de pé e aclamada em prosa e verso pelo mundo inteiro. Respeito os que pensam assim e a vêem como um exemplo. Para mim, ela é um grande fracasso. Uma das grandes virtudes de pessoas bem sucedidas é reconhecer e aceitar seus próprios limites. Uma corrida deve ser disputada por quem esteja apto para pelo menos ir até o final com dignidade. Só uma pessoa pode ganhar o ouro, é verdade, mas quem não está minimamente preparado para a prova, não deve arriscar-se ao vexame. Que se prepare melhor, treine mais, contrate um fisiologista, sei lá. Ninguém corre para chegar em último, mesmo sabendo-se que alguém vai ter que chegar por último. É como se um sujeito barrigudo e destreinado, porém amante do boxe, resolvesse, por amor ao esporte, desafiar o Mike Tyson no auge da carreira. Seria motivo para aplauso ou para risos?
Tanto a rolinha, como a corredora, como o desafiante pançudo podem até ser encarados como exemplos de esforço sério, dedicado e valente. Mas eles também me ensinam que apenas disposição e trabalho duro não são garantia de que a gente está fazendo a coisa certa. Não se pode justificar o insucesso com suor e canseira. Acho incrível quando ouço alguns relatórios missionários. Todo mundo fica de boca aberta com a “fidelidade” do irmão fulano de tal porque ele está há 25 anos em um lugar e até hoje “só viu três conversões, sendo que no ano passado um dos três se desviou”. Com todo respeito ao Doutor Rolinha, talvez esteja na hora de construir o ninho de outro jeito. Isto está mais para incompetência do que para determinação. É exemplo para ser evitado, não para se aplaudir.
Hoje fui para casa almoçar. Para minha surpresa, a jardinagem deu um jeito do drama roliníceo. Cortaram as palmeiras.
Tem rolinha que só aprende desse jeito.