Religião: a satisfação do espírito
5:1 Guarda o pé, quando entrares na Casa de Deus; chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal.
2 Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras.
3 Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar, palavras néscias.
4 Quando a Deus fizeres algum voto, não tardes em cumpri-lo; porque não se agrada de tolos. Cumpre o voto que fazes.
5 Melhor é que não votes do que votes e não cumpras.
6 Não consintas que a tua boca te faça culpado, nem digas diante do mensageiro de Deus que foi inadvertência; por que razão se iraria Deus por causa da tua palavra, a ponto de destruir as obras das tuas mãos?
7 Porque, como na multidão dos sonhos há vaidade, assim também, nas muitas palavras; tu, porém, teme a Deus.
Será mesmo que a religião representa algum tipo de perigo? Ninguém duvida que precisamos vencer o prazer desenfreado, a injustiça e a inércia. E, afinal, pessoas religiosas não costumam ser mais educadas e prestativas do que as outras? O senso comum não nos diz que ir à igreja faz bem para a alma e purifica o espírito? Então, por que a religião é tratada como algo traiçoeiro e venenoso?
Neste trecho o Koheleth volta seus olhos observadores para o homem enquanto adorador. O alvo do escritor não é o esquenta-banco, mas a pessoa bem intencionada que gosta de cantar e de ir à igreja, mas que só ouve e nunca cumpre o que propõe a Deus. Esse homem esqueceu-se de onde está e de quem ele é; acima de todas as coisas, esqueceu-se de quem Deus é.
“chegar-se para ouvir é melhor” (v.1b) tem uma força dupla no hebraico: prestar atenção e obedecer. Esta advertência nos lembra as famosas palavras de Samuel: “Eis que o obedecer é melhor do que sacrificar” (1Sm 15:22). Os tolos – que oferecem os tais “sacrifícios de tolos” – não são um tipo particular de pessoas, mas um tipo particular de comportamento.
No contexto do culto, Jesus nos indica claramente quem são esses tolos: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim.[1]” O v.2 ilustra a questão, denunciando o uso de um palavrório piedoso que, no entanto, ultrapassa nossos verdadeiros pensamentos e intenções. Se formos eventualmente interrogados sobre o que fizemos ou dissemos no culto público, nossas justificativas soarão tão ridículas quanto as palavras de um gozador ou de um mentiroso.
Compare os vv 4-6a com Mateus 5:34-37
A religião torna-se traiçoeira porque se faz passar pelo caminho verdadeiro para Deus, e acaba engolindo quem se aproxima dela. É venenosa porque a peçonha indolor só dá sinais de seus efeitos danosos com o tempo. E quando isso acontece, o estrago já está feito.
Quando a religião se torna um caminho de tolice
A religião se torna um caminho de tolice, em primeiro lugar, quando o religioso fala demais, amontoa palavras com a boca. O Koheleth menciona três vezes o falatório exagerado (vv.2-7NVI): “não seja precipitado de lábios”, “do muito falar nasce a prosa vã do tolo”, “não permita que a sua boca o faça pecar”, ou seja, não se perca em meio a conversas inúteis.
Além disso, a religião se torna um caminho de tolice, quando o religioso confunde sonho com realidade: “dos muitos trabalhos vêm os sonhos” (v.3) e “na multidão dos sonhos há vaidade[2]” (v.7), adverte o Koheleth. Religião é uma ótima fonte de ilusão, porque cria um mundo cor-de-rosa ao prometer mundos e fundos em nome de Deus.
O Eclesiastes não distingue o mundo onde vive o religioso do mundo onde vive aquele que não é religioso. Estaria, então, o Pregador dizendo que Deus não faz diferença neste mundo? É evidente que não. O que ele está tentando dizer é que a caminhada com Deus não visa um conforto circunstancial.
A seguir, a religião se torna um caminho de tolice quando o religioso começa a se julgar capaz. Quando olha para si mesmo e enche o peito de orgulho, quando começa a acreditar em si mesmo e em suas potencialidades. O religioso olha para si mesmo, se admira da força de seu caráter e da grandeza de sua alma e se orgulha da própria humildade!
Tiago nos adverte: “Meus queridos irmãos, que cada um de vocês seja rápido para ouvir, mas vagaroso no falar” (Tg 1:19 NVI).
Três conselhos sobre a religião
(1) v.2 fale pouco;
(2) v.5 não se atreva a fazer negócios com Deus;
(3) v.7 Ande no temor-do-Senhor[3].
Servidores públicos e Predadores oficiais
5:8 Se vires em alguma província opressão de pobres e o roubo em lugar do direito e da justiça, não te maravilhes de semelhante caso; porque o que está alto tem acima de si outro mais alto que o explora, e sobre estes há ainda outros mais elevados que também exploram.
9 O proveito da terra é para todos; até o rei se serve do campo.
O Pregador agora passa a fazer uma reflexão sobre a burocracia. O quadro, senão é de todo universal, não deixa de ser bastante familiar.
Cada servidor público pode acusar o sistema, enquanto as autoridades máximas governam a uma distância infinita das vidas que afetam. Mas o Koheleth está de olho em outro aspecto da burocracia: sua capacidade predatória em todos os níveis.
Lucas 19 narra o encontro de Jesus com Zaqueu. Os publicanos eram conhecidos como traidores do povo judeu, porque arrecadavam impostos para Roma e, além disso, era notória a corrupção entre eles. Passando Jesus por Jericó, caminho de Jerusalém, viu Zaqueu e lhe disse: “Quero ficar em sua casa hoje” (v.5). Após o encontro transformador com Jesus, Zaqueu toma uma atitude espontânea e sincera: “Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais” (v.8)
Apesar de toda denúncia contra a injustiça, o Koheleth não coloca esperanças em algum esquema utópico ou numa revolução violenta. O Pregador sabe o que existe dentro do homem e da capacidade corruptora do poder.
Por isso o seu primeiro comentário é não te maravilhes de semelhante caso (v.8), e acaba concluindo que até mesmo a tirania é melhor do que a anarquia.
Notas:
[1] Mateus 15:8
[2] Ou absurdos como na NVI
[3] Ele não tem a menor arrogância em dizer que faz o que Deus quer, mas declara toda a pretensão de andar em temor: “Sei que não faço o que Deus quer, mas eu não perdi o medo das consequências, não perdi o respeito por Deus nem o banalizei, e principalmente, jamais deixei de desejá-lo”.
Temor-do-Senhor é uma palavra só, cheia de significados ricos. O que é ser temente a Deus? Ser reverente. Nas palavras de Harold Kushner, “o medo nos afasta de Deus; a reverência nos aproxima dele”. A reverência é uma mistura de admiração e desejo.