Leia antes: familiolatria e tradicionalismo
Amigos, falta um para completar a tríade. Perceberam como se a gente conseguisse tratar destas coisas a casa poderia ficar bem melhor adornada? Os assuntos abordados nos dois primeiros artigos são coisas que acontecem em todo lugar, mas que em geral ninguém gosta muito de tocar, porque sempre acaba gerando algum desafeto.
No caminho para um upgrade da nossa vida pessoal e coletiva com Deus, seria bom tratar de frente também a superficialidade que caracteriza o nosso tempo. Alguém disse que a igreja evangélica brasileira tem 1000 Km de extensão e 5 cm de espessura. Concordo plenamente. Crescemos em número, fala-se em 30 milhões de “evangélicos” no país. Somos capazes de decidir uma eleição. Formamos um enorme mercado consumidor. Alguns defendem até que estamos vivendo um grande avivamento na nação. Encontram-se “crentes” em todos os níveis e atividades humanas: desde faxineiros e operários do chão de fábrica até gerentes, diretores, empresários, passando por atletas de várias modalidades (até lutador de jui-jitsu já apareceu), artistas globais (não entendo bem como isso pode funcionar, mas tem), chegando à bancada evangélica no congresso. Ah! Sim. A bancada evangélica. Tão piedosa e tão safada como todas as outras bancadas.
Fato é que mesmo com todos esses números impressionantes, não assistimos a uma correspondente mudança efetiva na sociedade em que vivemos. Porque existem cristãos em cargos de liderança, ainda não vemos uma mudança na maneira de fazer negócios. Porque existem cristãos na política (salvo exceções e eu recentemente conheci algumas delas no Rio Grande do Norte), a coisa pública não é tratada de maneira mais honesta. Estamos presentes em todos os segmentos, mas nem sempre fazemos diferença. Sequer conseguimos ser diferentes. Não dá muito para distinguir quem é quem. O argumento da contemporaneidade, da relevância, da contextualização, de fazer-se fraco para com os fracos é levado a tal extremo que não é mais necessário viver como cristão, pensar como cristão, decidir como cristão. Basta declarar-se cristão. Onde tudo isso começa?
Para mim, começa no tipo de evangelho que pregamos. Este está cada vez mais ralo. É quase uma agüinha com açúcar, para acalmar as angústias do homem pós-moderno. O que as pessoas querem? Uma palestra de auto-ajuda para enfrentar melhor suas culpas e temores? Pois não, vamos correr para atender a demanda. Tem muita gente precisando conselhos terapêuticos? Vamos criar grupos de interação. Nossos cultos passarão a ser voltados para o cliente. Nossa mensagem não pode assustar. Nada de falar muito sobre pecado, inferno, arrependimento, separação de Deus, morte. Esses temas não têm apelo de marketing. Eles não vendem. O máximo que dá para encarar é alguma série de ficção, tipo um Harry Potter gospel, com bastante mistério e aventura, mas que não fale nada sobre a necessidade de se preparar para os eventos proféticos que certamente, como afirmamos crer, acontecerão e em breve. Colossenses fala que “do modo como recebemos a Cristo, assim também devemos andar nele”. Quer dizer, a maneira como você entendeu o Evangelho vai ser determinante para o tipo de vida cristã que você vai viver. Se ouviu um evangelho ralo, sua vida cristã tende a ser rala.
Além do conteúdo, tem ainda a questão do compromisso. Desde os tempos dos apóstolos, passando pela igreja mártir, depois as épocas de verdadeiros avivamentos (como no país de Gales no final do século XIX), quando alguém realmente se convertia a Cristo, isto era sinônimo de um comprometimento, de uma entrega, que podia significar tudo, até a morte. Havia uma ruptura com o passado. Aliás, passava a haver um passado. Algumas coisas ficavam para trás. A Bíblia fala e os cristãos falavam de uma “velha vida”, uma coisa que acabou quando começou outra. A vida cristã era um recomeço e invariavelmente iniciava-se com o Novo Nascimento. Nada me incomoda mais na igreja contemporânea do que isso: a praga do gerundismo invadiu até o nosso testemunho de fé. Observe bem como os crentes contam sua “conversão” de uns anos para cá. Virou aquilo que eu chamo de “testemunho no gerúndio”. É mais ou menos assim:
- Dirigente: “José, conte para nós sobre sua conversão”.
José: “Pois não. É, bem, tipo assim, foi mais ou menos, tipo, eu fui chegando na igreja, fui gostando e fui ficando. Aí eu fui me enturmando, fui sendo convidado para um grupo, fui freqüentando e fui aprendendo as músicas. Aí eu fui me interessando pelo ‘batizado’ (sic) e acabei me membrando aqui. Olha, tá uma bênção (respira fundo e balança a cabeça afirmativamente, certo de que todo mundo entendeu direitinho o que isso significa)”.
Acho isso tudo muito estranho. Não sou daqueles que defendem que você precisa saber o dia e a hora da sua conversão, até porque não acontece do mesmo jeito com todo mundo. Mas quando o camarada não consegue identificar de alguma maneira um encontro com Jesus que o marcou e que mudou sua vida, é difícil acreditar que ele tenha entendido, se é que alguém lhe disse, as verdades fundamentais do Evangelho, necessárias a quem quer ser salvo: que ele é um pecador perdido, afastado de Deus, que precisa de arrependimento e fé, que a cruz de Cristo é a obra de Deus para a salvação, que ele pode ter certeza da vida eterna.
Não é para menos que a maioria das igrejas tem problemas com membros sem qualquer tipo de compromisso com Deus ou com a igreja. Para a maior parte dos cristãos de hoje em dia, a igreja é apenas mais um compromisso a ser elencado na sua agenda cheia. Assim como você vai à reunião dos pais e mestres, ao jantar com os ex-colegas da faculdade, à reunião do Rotary Club, ao supermercado ou à academia, você tem que tirar um tempinho no final de semana para ir à igreja, assistir boa música (senão a gente troca de igreja), ouvir uma mensagem (a mais curta possível, por favor, porque estou cansado) e voltar para casa. Esta é a vida cristã da grande maioria dos cristãos de hoje. E quando você tentar mexer com isso e abalar a zona de conforto onde eles estão, deitados eternamente em berço esplêndido, não tenha dúvidas: você vai ter problemas. Se for o pastor, será demitido. Se for um diácono, será destituído. Se for um professor de escola dominical, será gentilmente convidado a tirar “umas férias”. Se for líder do louvor, correrá o risco de ficar sozinho.
Somos uma geração sem valores, sem referência. Caminhamos no “vai-da-valsa”. Tocamos de ouvido. Os relacionamentos são superficiais, em casa, no trabalho e até na igreja. Estamos reduzindo até a nossa capacidade de comunicação. A língua está se modificando para adequar-se à incapacidade de falar dos nossos adolescentes e jovens. Um diálogo extremamente elaborado hoje em dia poderia ser algo assim:
- “E aí, belê?”
“Tudo, véio. “Tipo, se liga, mano”.
“Na boa, tô ligado!”
Isso pode ser considerado um papo altamente requintado para a nossa geração!
Tudo isto está refletido na igreja. Fico impressionado, por exemplo, com o baixíssimo nível de conhecimento das Escrituras que os jovens têm hoje em dia. Não é para menos, grande parte só aprende teologia de CD. São capazes de falar (ainda que usando monossílabos) sobre uma infinidade de assuntos, podem ficar horas jogando conversa fora literalmente nos chats, orkuts e msns da vida, mas não conseguem conversar por mais do que 5 minutos sobre assuntos espirituais. Eu fico perplexo diante de certas perguntas que me fazem quando estou pregando. E aqui não são apenas os jovens, não. As coisas que interessam a esta geração são extremamente sem importância prática. A agenda de algumas igrejas está 20 anos atrasada. A de outras é mera perfumaria. Tratam de assuntos periféricos, que não vão fazer diferença nenhuma.
Somos a junção de peças assim. Só que é para isso mesmo que o Evangelho existe: para trazer a expectativa de algo novo, para dar sentido, para dar lastro, para ser uma âncora da alma. Para fazer a gente parar e criar raízes e não ficar mais andando para lá e para cá feito barata tonta. Mas para isso acontecer, precisamos aprofundá-las e fincá-las bem fundo.
A superficialidade é um veneno que provoca uma morte lenta. Ela asfixia a espiritualidade sem que você se dê conta. Por isso, fique atento e tome as medidas necessárias para não ser atacado por ela.