Aquela criatura que havia sido a coroação de toda a criação, feito apenas pouco menor que os seres angélicos, coroados de glória e honra pelo próprio Yahweh, a quem o próprio Deus havia concedido o privilégio de o representar ante toda a criação (Sl.8.4-6), agora estava distante de seu Criador, depravado em suas vontades e focado na maldade. A perversão havia atingido até mesmo aqueles que haviam andado no passado com Deus: agora eles viviam em busca de fama e reconhecimento, casando-se com as mais belas das mulheres apenas pela busca do prazer e demonstravam por fato que sua vontade era totalmente má. Entretanto, o Criador de toda a Terra não está ausente, nem dormindo para que não veja o que acontece. Na verdade, Ele vê, sofre e intervém. Esse é o relato de Gênesis 6 no que se diz respeito a Yahweh: Ele não é um Deus ausente, Ele é um Deus que Interage.
A. O Decreto de Yahweh
O primeiro modo pelo qual vemos Yahweh interagir com a humanidade é a imposição de seu Decreto. Nesse texto vemos não apenas um Deus que sabe ou conhece a situação da humanidade; Yahweh é apresentado como Senhor Soberano sobre a terra, que exerce seu julgamento.
1. Abstenção Divina:
A primeira manifestação do decreto divino é expressa pela manifestação de seu descontentamento com a humanidade. Suas palavras são fortes e claras: “Então, disse o SENHOR: O meu Espírito não agirá para sempre no homem”. Mas, que quis dizer o Senhor com tal expressão?
Não agirá meu espírito: A primeira pergunta que temos que responder refere-se ao sentido do verbo em português “agir”: Em que sentido o Espírito de Deus não “agirá” mais no homem? O termo hebraico “duwn” pode significar “contender” ou até mesmo “permanecer”, sentido usado pela LXX (Gr. katamenö), embora normalmente seja usada com o sentido de “exercer julgamento”. Diferentes versões apresentam diferentes interpretações para essa expressão, por exemplo, a New Jerusalém Bible (NJB) opta por entender o termo com o sentido da responsabilidade divina sobre o homem: “Meu espírito não pode ser responsável por tempo indeterminado pela humanidade”. Esse sentido é visto na Bíblia na Linguagem de Hoje, cujo texto reflete a mesma idéia, embora prefira outros termos: “Não vou proteger o homem por muito tempo”. Já a Complete Jewish Bible prefere o conceito da permanência do Espírito de Deus eternamente no homem, idéia apoiada por diversas versões: “Meu espírito não viverá na humanidade para sempre”. A preferência da ARA pelo verbo “agir” é uma adaptação do sentido comumente encontrado nas versões portuguesas, “contender” que dá a idéia de interação divina, evitando a idéia de permanência do Espírito de Deus no homem.
Todas essas versões estão na verdade buscando um modo de verter o termo hebraico que normalmente está ligado ao juízo ou julgamento. Provavelmente Keil & Delitzsch estejam corretos quando traduzem o termo com o sentido de autoridade que o termo parece impor ao texto: “Meu Espírito não mais exercerá domínio no homem para sempre[1]”. Com isso, a idéia não é que Deus deixaria de permanecer no homem, fato que, de acordo com o Novo Testamento seria impossível nessa ocasião, mas que Deus deixaria de exercer sua influência pessoal na humanidade. Ou seja, Deus deixaria de estar, ou até mesmo permanecer, entre os seres humanos.
Sendo assim, a humanidade fora largada à sua própria conduta, pois Deus julgou necessário se fazer ausente dessa humanidade que faziam de conta que Ele não existia. Em outras palavras, vemos Deus retribuindo ao homem sua apatia e desconsideração: Deus age, interage e responde ao homem à altura de suas ações. Aconteceu na sociedade de Noé, o que Paulo também atestou em outras palavras sobre a sua: “Deus entregou os homens tais homens à imundícia (…) paixões infames (…) e a uma disposição mental reprovável” (Rm.1.24, 26, 28). Adam Clarke parece ter visto esse mesmo sentido no termo, e sobre o texto afirmou:
“É somente pela influência do Espírito de Deus que a mente carnal pode ser subjugada e destruída, mas aqueles que voluntariamente resistem e entristecem o Espírito devem ser finalmente deixados à dureza e a cegueira de seus corações[2]”
Lutero parece ter encontrado sentido similar nessa passagem:
“Eu interpreto as palavras simplesmente como dizendo que o Senhor, como se tivesse cansado da teimosia obstinada do mundo, denuncia a vingança como o presente, que até então havia sido adiada. Quando o Senhor suspende a punição, Ele, em certo sentido, se contende com os homens, especialmente através de ameaças ou de exemplos de castigo suave e convida-os ao arrependimento. Entretanto, ele já o tinha feito há alguns séculos com o mundo, que, no entanto, estava perenemente se agravando. E agora, como se estivesse exausto, Ele declara que ele seu espírito não contedenderá com o homem mais”
Em outras palavras, percebemos que a primeira manifestação divina é oferecer ao homem o que ele parece buscar: Liberdade para realizar o que bem intentar. Tal liberdade oferecida pela abstenção da manifestação divina naquela sociedade fez com que a libertinagem crescesse irremediavelmente. A maldade se espalha, a humanidade se corrompe e tal sociedade merece receber de Deus seu Juízo. A abstenção divina de governo sobre o homem acresce neste o desejo da livre agência, e suas realizações carnais parecem agora fatais.
…para sempre no homem: A partir desse ponto aprendemos que a ação divina na humanidade não é constante, mas que Deus pode manifestar-se em sua abstenção. Essa decisão divina está em conformidade com seu caráter, que não tolera o erro e o pecado, mas que se permite oferecer ao pecador tempo antes de proferir seu juízo eliminatório, pois como Deus amoroso que é, sempre oferece oportunidade para arrependimento e perdão, como vemos nessa história.
2. Misericórdia:
A segunda manifestação do decreto divino é vista em sua misericórdia, como lemos: “O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos”.
…pois este é carnal: A razão da abstenção divina na atuação entre os homens é que os tais são carnais. O sentido aqui parece supor tanto a mortalidade dos homens, como a NET e a NIV parecem ressaltar, como seu caráter. Essa conclusão parece clara quando entendemos o contraste entre o Espírito de Deus e a carnalidade do homem: É um claro paralelo entre eternidade divina e efemeridade humana, bem com da santidade de Deus e sacanagem do homem.
…os seus dias serão cento e vinte: Essa imposição divina não trata-se da estimativa de vida dos seres humanos, mas do tempo de manifestação de sua ira, como Pedro nos instrui: “os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca” (1Pe.3.20). Ao que esse texto indica, Deus além de se abster de convencer o homem de suas maldades, ofereceu tempo para sua ação disciplinadora. Ele poderia tê-los dizimado instantaneamente, mas optou por sua longanimidade oferecer ao homem oportunidade de arrependimento. Esse exercício da paciência de Deus testemunha sua paciência e longanimidade para com o homem, que embora mereça receber sua ira recebe ainda tempo para seu arrependimento.
3. Juízo:
A terceira manifestação do Decreto Divino encontra-se na sua firme decisão de exercer juízo àquela geração pecadora. A decisão de Deus é clara: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus” (Gn.6.7)
Farei desaparecer: Até aqui vemos as escrituras apresentarem a morte do homem como natural ao curso de sua vida, com algumas exceções pelo caminho, como Abel, assassinado por seu irmão, e alguns dos possíveis ataques de Lameque. Contudo, a designação divina aqui se propõe a dizimar a humanidade, como nos lembra Albert Barnes: “Agora, uma geral e violenta destruição afligirá toda a humanidade como um monumento da divina ira contra o pecado para todas as gerações futuras da única família salva[3]”. Para tentar descrever o desprazer de Deus com o homem, John Gill oferece a seguinte ilustração:
“Apesar de serem eles minhas criaturas, fruto do trabalho de minhas mãos, Eu os fiz do pó da terra e os fiz senhores sobre toda terra; mas agora Eu decidi demonstrar minha desaprovação por sua perversidade, e pela honra da minha justiça vou destruí-lo da face da terra. Como um oleiro que pega um vaso que desgosta, um que ele mesmo tenha feito, e o quebra em pedaços, eu farei desaparecer o homem da terra[4]”
Explicando o mesmo texto, Mathew Henry utiliza duas figuras para tentar expressar o sentido auferido pelo texto: (1) Como pó ou sujeira é varrida e jogada no monturo o ser humano será desaparecer da terra; (2) Como uma sentença de um livro apagado por seu autor, o ser humano terá sua existência apagada na terra, por seu próprio autor[5].
..homem e animal: O pecado dos seres humanos tem conseqüências. Como já vimos, o pecado de Adão foi suficiente para amaldiçoar toda a terra, e agora, o pecado do homem trouxe juízo para toda a criação, afinal, a criação sofre (geme) na expectativa de sua libertação (Rm.8.22). Mas, qual a razão de um julgamento tão abrangente? João Calvino nos instrui:
“A terra era como uma casa rica, bem favorecida com cada tipo de disposição em abundância e variedade. Agora, assim que o homem contaminou a própria terra, com seus crimes, e tem vilmente corrompido toda a riqueza com que foi suprido, o Senhor determinou que o monumento de sua punição deveria ser colocado lá: como se um juiz, a punir um mais perverso e abominável crime, deve, em prol da maior infâmia, define que sua casa deve ser destruída desde a fundação. E tudo isso tende a inspirar-nos com um temor do pecado, pois podemos facilmente inferir quão grande é a sua atrocidade, quando a punição é estendida até mesmo para a criação natural[6]”
2. A visão de Yahweh:
O segundo modo que vemos Yahweh interagir com a humanidade é sua constante atenção aos seres humanos. O texto usa a figura de um Deus que vê. É certo que Deus não tem olhos como nós, mas Aquele que criou os olhos estaria cego à desgraça da humanidade? Certo que não. Sobre esse fato, Barnes afirmou: “O curso do mundo primitivo foi uma grande experiência a passar diante dos olhos de Deus e de todos os observadores inteligentes, e manifestar a profunda depravação e a contínua degeneração da raça caída[7]”.
Viu o Senhor: É interessante que esse texto comece a apresentar a Deus do modo como se entende uma pessoa. A intenção aqui não é defender a existência de olhos em Deus, como se este tivesse corpo, mas que o Yahweh não é um Deus ausente de sua Criação. Sua atenção está direcionada para sua Criação e de modo especial para o homem. Tenho a impressão que essa expressão usada aqui é uma forma de contrastar a ação de Deus no relato da Criação: Enquanto na criação Deus viu que era bom, aqui Deus viu que era mal o desígnio do coração do homem. Calvino também entende que essa expressão sugere a paciência de Deus, que antes de decretar qualquer ação contra o homem, pôs-se a observar e considerar sobre a existência humana. Em suas palavras: “Pela palavra viu, ele [Moisés] indica a longa e contínua paciência, ou seja, que Deus não tinha proclamado Seu juízo para destruir os homens, até bem depois de ter observado e considerado por muito tempo, o seu caso, Ele viu que eles haviam passado do ponto da recuperação[8]”.
…a maldade do homem: A descrição da maldade o homem foi dada por diversos autores, mas a visão de Adam Clarke merece ser observada:
“Eles eram carnais (Gn.6.3), totalmente sensuais, os desejos da mente confusa e perdida nos desejos da carne, sua alma já não discernia o seu destino do alto, mas sempre cuidando de coisas terrenas, de modo que eles se tornaram sensualizados, brutalizados e tornaram-se carnais, encarnado, para não reter Deus em seu conhecimento, eles viviam buscando a sua parte nesta vida. Eles estavam em um estado de perversidade. Todos estavam internamente corrompidos, e seu exterior em impiedade, nem a ciência nem a prática da religião existia. A Piedade se foi, e cada forma de sãs palavras havia desaparecido. Essa maldade foi grande, foi multiplicada, foi continuamente crescente, aumentando e multiplicando recorrentemente, de modo que toda a terra estava corrompida diante de Deus, e se encheu de violência, (Gn.6.11); libertinagem entre os oprimidos, e crueldade e opressão entre as classes mais altas, sendo apenas predominante[9]”.
…continuamente mal o seu coração: “Moisés já demonstrou a causa do dilúvio em função dos atos externos de iniqüidade, mas ele agora vai além e declara que os homens não eram apenas perversos pela prática e pelo costume de viver mal, mas que a maldade estava muito profundamente enraizadas em seus corações, de modo que não deixou qualquer esperança de arrependimento[10]”. Sobre essa expressão, John Gill apresenta uma visão interessante:
O coração do homem é mau e perverso, desesperadamente perverso, sim, a maldade em si mesmo, uma fonte de iniqüidade, das quais a abundância do mal flui, pelo qual pode ser conhecido, em certa medida o que está nele, demonstra como ele é mau; mas Deus, que o vê, só conhece perfeitamente toda a sua maldade e o mal que há nele: os pensamentos de seu coração são maus, os maus pensamentos são formados no coração, e se desenvolvem a partir dele, por isso é vão , tolo, pecaminoso e abominável aos olhos de Deus, por quem eles são vistos, conhecidos e percebidos de longe: a “imaginação” de seus pensamentos é má, a formação deles, ele é mal enquanto é formado, o substrato do pensamento, o início da mesmo, o primeiro movimento a ele, sim, “cada um” dos pensamentos era mau, e “só” isso; não havia entre eles um homem bom, e nem uma coisa boa em seus corações, nenhum bom pensamento, nem uma boa imaginação do pensamento, e por isso era “continuamente” [mal o seu coração] desde o seu nascimento, a partir de cima sua juventude, em toda a sua vida, e todos os dias de suas vidas, dia e noite, e dia após dia, sem intervalo: isso representa a corrupção original da natureza humana, e mostra que ela é universal, por isso não foi verdade apenas dos homens do mundo antigo, mas de toda a humanidade, o mesmo se diz dos homens depois do dilúvio, como antes, e de todos os homens em geral, sem qualquer exceção (Gn8.21)[11].
A idéia de que todos os aspectos do homem estavam corrompidos encontram nessas expressões seu estado máximo. Todos os aspectos da humanidade estavam, não apenas fadados ao pecado, mas intrinsecamente aprofundado nele. O problema não era apenas o que acontecia, ou o que faziam os seres humanos, mas também os aspectos internos do homem, seus pensamentos e desejos.
3. O Sentimento de Yahweh
O terceiro modo como vemos Deus interagir com a humanidade é sua expressão de resposta as ações humanas: Deus não apenas vê e exerce juízo, mas Ele também se entristece. Uma das características de Yahweh é que Ele sofre com os maus caminhos de suas criaturas, e observe que o texto fala da humanidade como um todo. Duas expressões são usadas nesse texto para apresentar esse fato: Seu arrependimento e seu pesar.
Em Gênesis vemos uma declaração interessante sobre Deus, observe: “então, se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gn.6.6, 7). Essa declaração de Moisés sobre as palavras de Deus em relação a humanidade é sem sombra de dúvidas interessante: Deus se arrepende.
Mas, isso significa que Deus muda? As escrituras são claras quanto ao fato de que Deus não muda, observe: “Porque eu, o SENHOR, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” (Ml.3.6); “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm.15.29); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17). Mesmo Moisés apresenta Yahweh como um Deus que não se arrepender: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm.23.19). Entretanto, em Gênesis lemos que Deus se arrependeu. Como compreender o arrependimento de Deus (Gn.6) e o fato que Ele não se arrepende (Nm23.19?) na visão do mesmo autor?
Em primeiro lugar, precisamos entender o que de fato significa a Imutabilidade divina: Imutabilidade de Deus é a perfeição que lhe é atribuída pelas escrituras que diz respeito à Sua capacidade intrínseca de nunca fazer-se apresentar sob outro aspecto. Essa perfeição é aplicada a Seu Caráter (Tg.1.17), Vontade (Is.46.9-10) e Propósitos (Hb.6.17). Imutabilidade por vezes é reconhecida como a perfeição absoluta, pelo fato de que Deus é completo, pleno em Seus atributos (Nm.32.19; Sl.33.11; Ml.3.6; Tg.1.17).
Em segundo lugar, devemos entender que o fato de Deus ser exaltado acima de toda sua Criação ele também se faz presente diante dela. Ou seja, o fato de que Deus não muda e que isso o diferencia essencialmente de toda sua criação, não gera impossibilidade de relacionamento entre Deus e suas criaturas, pois é um Deus pessoal pronto a interagir com os objetos do seu amor. Em outras palavras estamos afirmando que, a verdade sobre Deus compreende tanto Sua transcendência, o fato de que é exaltado acima de tudo e todos por que é o que é e que ninguém jamais poderá sê-lo, como Sua imanência, o fato de que Deus se faz presente no tempo, ativo, participativo, de modo que sua Transcendência não minimiza sua Pessoalidade nem sua Imanência sua Soberania. Deus é completamente Soberano e Pessoal, perfeitamente transcendente e imanente: “Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o SENHOR, e não também de longe?” (Jr.23.23).
Em terceiro lugar, devemos lembrar que o termo hebraico por trás da tradução portuguesa para “arrependimento” é bem mais abrangente do que o que entendemos com o termo em português. O termo hebraico usado aqui é “nacham” e tem um dos três significados básicos dependendo do contexto:
- Experimentar pesar ou sofrimento emocional: Esse sentido é relativamente comum e eventualmente é demonstrado no texto hebraico no passado: “Então, o povo teve compaixão de Benjamim, porquanto o SENHOR tinha feito brecha nas tribos de Israel” (Jz.21.15; cf. Jz.21.15; 1Sm.15.11,35; Jó.42.6; Jr.31.19).
- Consolar ou ser consolado: Esse uso é relativamente freqüente no AT e claramente encontrado na literatura Mosaica: “E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque foi consolado depois da morte de sua mãe” (Gn.24.67; cf. 27.42; 37.35; 50.21;38:12; 2Sm.13.39; 77.3; Sl.1.24; Is.1.24; Jr.31.15; Ez.14.22; 31.16; 32.31)
- Arrepender-se ou mudar de mente: Em alguns textos não teologicamente discutidos a idéia de mudança de mente é encontrado, mas com alguma dificuldade: “Tendo Faraó deixado ir o povo, Deus não o levou pelo caminho da terra dos filisteus, posto que mais perto, pois disse: Para que, porventura, o povo não se arrependa, vendo a guerra, e torne ao Egito” (Ex.13.17; cf.Dt.32.36; )
É importante dizer que o sentido básico do termo, e certamente mais freqüente no AT é o de “consolar”. Das 108x que é usado no AT pelo menos em 66x a idéia está relacionada com o consolo. Apesar de o termo ter conotações de arrependimento, mesmo que aplicado a seres humanos, esse não é o termo normalmente utilizado para isso. Normalmente o AT usa o termo “shuwb”, que tem por idéia básica o voltar-se (Gn.3.19; 8.12; 18.14), para descrever a idéia do arrependimento como mudança de comportamento e atitude (Gn.27.45; Ez.14.6).
Tendo observado isso, é verificável que o sentido de “consolo” não é contextualmente aceitável em Gn.6 ao passo que a idéia de arrependimento e pesar são as mais indicadas para o texto e a primeira certamente tem sido favorecida largamente nas versões modernas das escrituras, seja em inglês (ASV, KJV) ou em português (ACF, ARA, ARC, NVI), entretanto, não tem sido a opção unânime. Por exemplo, a NIV, versão inglesa da Nova Versão Internacional, optou por assim verter o texto: “O Senhor se afligiu por ter feito o homem na terra”. A NET Bible, por sua vez, preferiu: “O Senhor se lamentou de ter feito o homem sobre a terra”. Essas duas leituras além de serem lexicograficamente possíveis, parecem contextualmente mais aceitáveis.
É bem provável que toda essa discussão tenha nascido na má compreensão do termo hebraico e do termo latino visto na Vulgata. De modo muito interessante, a Vulgata usou o termo “paeniteo” que também carrega a idéia de “pesar” e “arrependimento”[12]. Entretanto, nem o inglês nem o português têm um termo que lhe seja equivalente e por isso, sempre que passamos por esse texto precisamos investir na explicação do termo. Considerando que o termo hebraico pode ser entendido como uma expressão de caráter emocional, e que o contexto é favorável a essa leitura, entendo que tanto a NET Bible como a NIV são representações mais acertadas para se descrever esse texto.
Aliás, é importante notar que Moisés também usa o termo “’atsab” traduzido por pesar em português. A idéia do termo é claramente a demonstração de dor e sofrimento, que em Gn.6.6 descreve o coração (hb. leb) do próprio Deus. Sobre isso, Sailhamer afirma:
“Ao tornar Deus o sujeito dessa do verbo no verso 6, o autor nos demonstra que o pesar e o sofrimento sobre os pecados dos seres humanos não era algo que apenas os homens sentiam. O próprio Deus lamentou pelo pecado do homem (v.7)[13]”
Derek Kidner sobre esse texto afirma:
“Esta é a maneira de falar do Velho Testamento, em que emprega as expressões mais ousadas, contrabalanceadas em outros lugares, se necessário, mas não enfraquecidas. A palavra pesou tem afinidades com as palavras aflição e fadiga de 3.16, 17. Agora Deus sofre por causa do homem[14]”
Ernest Kevan quando fala sobre seu entendimento desse texto, afirma:
“O Deus revelado pelas escrituras é capaz de sentir tristeza e de ser entristecido. Ele tem reações reais para com a conduta humana. Não obstante, é impossível conceber o Deus onisciente a lamentar-se por algum falso movimento por ele feito. O arrependimento de Deus não é uma alteração quanto aos propósitos, e sim, uma mudança de atitude[15]”
David Merkh acrescenta:
“Deus é uma PESSOA, e sendo assim tem emoções. Talvez sejam diferentes do que nós entendemos, mas Deus não é uma máquina. A palavra “arrependeu-se” tem duas conotações. Primeiro, Deus se entristeceu. Segundo, significa que haveria um ajuste no plano dEle. Mas a mudança em Deus é mais uma mudança do nosso ponto de vista[16]”
Diante dessas considerações fica evidente que a Imutabilidade do Propósito de Deus foi preservado na história do dilúvio sem que isso excluísse a idéia de Interação de Deus com Sua Criação por seu sofrimento emocional e pesar, e, isso é plenamente verificável pelos termos hebraico utilizados no próprio texto.
Com isso, afirmamos que Deus nunca está ausente de sua criação nem a tem deixado à mercê de suas próprias criaturas: Como Criador poderoso e benevolente, Deus se limita a estar disponível para suas criaturas com o propósito de demonstrar sua graça incondicional e amor pleno. Entretanto, quando Seu limite é atingido, Ele mesmo se responsabiliza em disciplinar suas criaturas de modo a honrar sua Santidade e Fidelidade. A história do dilúvio é exatamente isso: Por um lado Justiça em jus a Sua Santidade; Por outro Fidelidade para com sua promessa de um libertador descendente da mulher e amor e graça para com Noé, homem com quem dividia um relacionamento especial.
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Notas
[1]Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.
[2]CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[3]BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[4]GILL, John, Gill`s Exposition of the entire Bible. (http://www.freegrace.net/gill/).
[5]HENRY, Matthew, Commentary on the Whole Bible.
[6]CALVINO, João, Commentary on Genesis. (http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
[7]BARNES, Albert, Notes on the Bible.
[8]CALVINO, João, Commentary on Genesis. (http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
[9]CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the Bible.(http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)
[10]CALVINO, João, Commentary on Genesis. (http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).
[11]GILL, John, Gill`s Exposition of the entire Bible. (http://www.freegrace.net/gill/).
[12] A LXX utiliza “enthuméomai” que descreve uma atitude das faculdades mentais, como considerar, avaliar. Em uma leitura mais idiomática, a tradução da LXX seria: “Considerou Deus sobre ter feito o homem sobre a terra e se desagradou”
[13] SAILHAMER, John, Genesis. Pp.81.
[14] KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.81.
[15] KEVAN, E.F., Gênesis – Novo Comentário da Bíblia. Vol.1, pp.90.
[16] MERKH, David, Graça e Desgraça (Gn 6.1-8)
(http://www.palavraefamilia.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=195&Itemid=108)