Uma nota introdutória
Cada um dos quatro Evangelhos dá testemunho de Jesus a partir de uma perspectiva ligeiramente diferente, mas todos contam a mesma história. É isto que torna seu trabalho harmônico — ou mesmo sinfônico. A obsessão com a exatidão cronológica dos relatos dos Evangelhos tem contribuído durante séculos para a perda de pontos cruciais na história. A razão principal para isso é que os estudiosos gastaram tempo demais ligando passagens bíblicas, e no processo não prestaram atenção na importância das diferenças dos vários relatos evangélicos.
Nesta reflexão não pretendo dar uma explicação sobre as diferenças entre as citações sobre o Jesus histórico e a coesão dos relatos dos Evangelhos. Minha intenção é avaliar os eventos da Semana Santa sob três ângulos — ou pontos de vista diferentes: (1) O ponto de vista de Jesus; (2) O ponto de vista dos discípulos/seguidores próximos; (3) O nosso ponto de vista.
Domingo de Ramos
Em Betânia, cidade localizada há três quilômetros de Jerusalém, Jesus envia dois discípulos a um lugarejo próximo e lhes disse: “2Vão ao povoado que está adiante de vocês; logo que entrarem, encontrarão um jumentinho amarrado, no qual ninguém jamais montou. Desamarrem-no e tragam-no aqui. 3Se alguém lhes perguntar: ´Por que vocês estão fazendo isso?´, digam-lhe: O Senhor precisa dele e logo o devolverá.”[1]
Jesus começa a desvelar sua identidade como o Messias Prometido nas Escrituras: “9Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte, Jerusalém! Eis que o seu rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta.”[2]
No Israel antigo, quando um rei entrava na capital, montava um jumento ou uma mula. Os reis Davi e Salomão os montaram para entrar em Jerusalém.[3] Além disso, aqueles que montam em jumentos — ao contrário de cavalos — são portadores de paz.
Cercados de gente, por seu cântico ensurdecedor, subiram o monte das Oliveiras. Ágeis rapazinhos escalaram os troncos dos damasqueiros com facas nos dentes; eles arrancavam as longas folhas — do mesmo modo que os judeus haviam feito triunfalmente nos dias dos macabeus (“… nós esperávamos que era ele que iria trazer a redenção a Israel”[4]). Os peregrinos embaixo recolhiam as folhas. Crianças, mulheres, todos abraçaram a febre da esperança de uma vitória como a dos tempos macabeus.
Aquelas pessoas eram facilmente identificáveis: eram os despossuídos. Pobres, fazendeiros expulsos de suas terras, artesãos, arrendatários, mulheres cujos pés ficaram azuis com as uvas dos ricos, pescadores esmagados debaixo dos impostos, mendigos que ainda viam razão para adoração e para Jerusalém. Eles dançavam diante do Senhor! Conheciam o nome de Jesus, ele que vinha de Nazaré! Acenavam com seus ramos e cantavam:
Hosana, hosana!
Bendito é o que vem!
Bendito é o filho de Davi!
Bendito é o que vem em nome do Senhor!
Hosana nas alturas!
Fim de tarde Jesus retorna a Betânia — subúrbio de Jerusalém. Seus discípulos estavam eufóricos.
Segunda-feira
Jesus passa de Betânia para Jerusalém. Quando era uma criança de doze anos, Jesus havia visto o gado e as aves vendidos aqui para os sacrifícios dos peregrinos. Quando criança, havia sentido os cheiros; tinha ouvido seus balidos, seus berros, o pisotear de cascos amarrados, o agitar repentino de asas enjauladas.
Como homem, no entanto, praticante das Escrituras, como profeta, como Filho de Deus, a atenção de Jesus foi tomada pelos animais. E pelo dinheiro. E pelo comércio. Ele olhou ao redor desse mercado de apregoadores com crescente indignação. Era baixo, mas também ágil. Seus músculos eram faixas de metal e sua destreza devastadora.
Ele ergueu sua vara de caminhada como se fosse um martelo e baixou com tamanha fúria que uma mesa de câmbio partiu-se em dois. Ergueu-a e girou-a novamente. Esmagou gaiolas, quebrou ferramentas, espatifou caixas de dinheiro e espalhou suas moedas sobre as fezes dos animais. Mercadores tentaram escapar; ovelhas foram soltas e bois libertados, as vacas mugindo balançaram suas grandes cabeças em confusão; com um açoite de corda, Jesus guiou o gado na direção das escadarias e para fora do Templo. Judas — quem sabe outros insatisfeitos — imitou seu Mestre, chutando as mercadorias, rindo, estapeando as faces dos mercadores que passavam.
— Eu sabia! — ele berrava. — Eu sabia! Aqui vamos nós! O plano está apenas começando!
Os evangelistas usam citações diferentes do Antigo Testamento para descrever a razão para a purificação do templo. Enquanto os sinóticos citam Jesus dizendo: “…a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”[5] e “Este templo, que leva o meu nome, tornou-se para vocês um covil de ladrões? Cuidado! Eu mesmo estou vendo isso”, declara o Senhor.”[6]. João, por outro lado, justifica a ação de Jesus de uma maneira diferente. Lemos em João 2:17 “seus discípulos lembraram-se do que está escrito: “pois o zelo pela tua casa me consome, e os insultos daqueles que te insultam caem sobre mim”, numa clara citação dos Salmos[7]. Os sinóticos demonstram a perda de envolvimento de Israel com sua missão de luz para os gentios.[8]
Para João, a questão é a profanação — a perda da pureza — do local reservado para a adoração em Jerusalém.
A ênfase sobre a pureza do Templo (versus a perda da luz das Nações observadas nas contas dos sinóticos) argumenta que o público compartilhou estas preocupações e, presumivelmente, teria ressoado com esta mensagem. De acordo com o retrato de João, Jesus atuou como promotor do pacto no qual veio verificar a aptidão do Templo para o serviço divino. Ele declara o Templo de Jerusalém impróprio para o culto divino, porque estava sob a administração falha e infiel da elite religiosa e política governante da Judéia.
Os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os líderes religiosos ficaram furiosos e tentaram intimidá-lo: “Quem te deu autoridade para fazer estas coisas?”[9]. Jesus os surpreende com uma questão a respeito de fé (“Se dissermos: Dos céus, ele perguntará: então por que vocês não creram nele?”[10]) e a resposta que obtém foi um sonoro “Não sabemos” [11]
Que dia vitorioso! Resgatar a importância do Templo e ainda fazer calar as maiores autoridades! Que hora boa para alugar um quarto no principal hotel de Jerusalém e seguir as atividades da semana cercado da imprensa local! No fim do dia, contudo, Jesus retorna para Betânia.
Terça e quarta-feira
— Olhe só essas pedras [do Templo] — maravilhou-se Judas. — Que planejamento! Que triunfo! Aposto que Roma nunca construiu edifícios como este!
— Edifícios como este — disse Jesus. — Eu lhe digo que está chegando a hora em que não será deixada pedra sobre pedra. O mármore, o cedro, as colunas e os capitéis, portões e pórticos, muralhas e telhados: tudo será saqueado e cairá ao chão em pedaços.
Judas fez uma pausa enquanto o restante continuou caminhando.
— Mas nós viemos para tomá-lo, certo? Não para derrubá-lo. Mestre? Certo?
Jesus participa de outras discussões. Sobre anarquia e desobediência civil responde: “Devolvam a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”[12] deixando claro que não adianta nada a desobediência civil alienada da fé em Deus. Na porta do templo observa uma pobre viúva entregando tudo o que possuía e exaltou a fé desta mulher — sem sequer mencionar que aquela viúva era uma vítima de um sistema sócio-político injusto e mau.
Dentre outros assuntos ‘pouco revolucionários’, Jesus fala sobre rejeição pelos seus próprios compatriotas: “22 A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular. 23 Isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós.”[13]; Fala também sobre ressurreição dos mortos — um assunto truncado — mas deixa claro que “Deus não é Deus de mortos, mas sim de vivos”.
Nestes dois dias Jesus ensina por meio de parábolas: Quem é o meu próximo? O Bom Samaritano, As dez virgens, Os Talentos, Os Cabritos e as Ovelhas. Nada de revolução.
— Ouça-me. Por favor — disse Jesus. Minha hora não será em nada como a hora pela qual espera qualquer rebelde ansioso. Não haverá luta, não haverá mão poderosa ou braço estendido, nenhuma vitória nacional. Vocês estão me ouvindo? Apenas um homem irá derramar seu sangue pelo povo…
— De quem quer que seja o sangue! De quem quer que seja, Mestre. Não importa! O que importa é que a hora tem de ser logo. Nada na segunda. Nada na terça. Não fizemos nada hoje.
— Devemos voltar para Betânia.
Em Betânia, certa Maria unge os pés de Jesus com um perfume caríssimo.
— Um perfume de 300 denários… um ano inteiro de trabalho…
— “Tudo o que ela possuía” — a voz de Jesus cortou o ruído com articulada precisão. “Tudo o que tinha para viver”. Um único dia depois, e você já esqueceu? — “Ela fez o que pôde. Derramou o perfume em meu corpo antecipadamente, preparando-o para o sepultamento.”[14]
O dia termina com QUESTIONAMENTO e DECEPÇÃO. “Então Judas Iscariotes, um dos Doze, dirigiu-se aos chefes dos sacerdotes a fim de lhes entregar Jesus. 11 A proposta muito os alegrou, e lhe prometeram dinheiro. Assim, ele procurava uma oportunidade para entregá-lo.”[15]
Judas reprova Maria por causa do valor do perfume, dizendo que era melhor vender e dar o dinheiro aos pobres, mas decide trair Jesus por trinta moedas de prata, o valor de um escravo.
Quinta-feira
Jesus reúne seus amigos íntimos para celebrar o jantar pascal. A história da libertação do povo de Deus da escravidão Egípcia seria contada. Era uma tradição. Todos os anos deveria ser celebrada para jamais ser esquecida.
Jesus providenciou a primeira rodada de vinho: levantou-se, fez o circuito todo pelo interior do quadrado e um a um distribuiu os cálices — até que todos tinham o seu, menos ele.
— Bendito seja o Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos escolheu dentre todos os povos — Jesus disse; — que exaltou-nos dentre toda língua e santificou-nos por seus mandamentos.
— Bendito és tu, ó Senhor nosso Deus, por criar o fruto da vide.
Depois de terminar a bênção ele disse:
— Bebam. Quanto a mim, não beberei do fruto da vide antes que o reino do céu tenha vindo.[16]
Cerimoniosamente, cada um tomou seu cálice. Menos Jesus. Ele não tinha cálice.
Em seguida ele ergueu diante de nós um pão redondo e achatado e proferiu a expressão familiar:
— Bendito és, ó Senhor nosso Deus, Rei do universo, que produzes da terra o pão.
Como antes, ele partiu o pão em pedaços e deu a cada um de nós um pedaço, dizendo:
— Tomem. Comam.
Logo depois de colocarmos o pão na boca, ele sussurrou:
— Este é meu corpo, partido por vocês. Façam isso em memória de mim.
No momento seguinte, Jesus estava falando. Roucamente. Um nó em sua garganta. — Um de vocês — ele disse. Baixou a cabeça e tossiu. Erguendo devagar a cabeça desta vez, ele repetiu: — Um de vocês está para me trair. Um de vocês planeja me entregar.
Os discípulos olharam interrogativamente uns para os outros: de quem ele estava falando? — Quem senhor? Quem será?
Depois de mergulhar o pedaço de pão no molho amargo, ele deu-o a Judas Iscariotes e disse:
— O que você está para fazer, faça-o depressa.
Judas desdobrou seu corpo pernudo, ficou em pé, foi até a porta e a abriu — a noite entrou negra como um corvo e apoderou-se de Judas, puxou-o para fora como se tivesse garras e uma terrível vontade, a porta se fechou, Judas partira, as chamas das lâmpadas se endireitaram novamente e o aposento se iluminou.
Não, esta não era uma refeição de Páscoa como as que qualquer um deles já tivesse participado. Ninguém fez a pergunta: Por que esta noite é diferente de todas as outras noites? — pois a noite era de fato diferente.
Quando a refeição terminou, o Senhor tomou nas mãos um grande cálice cheio de vinho. Este, também, ele ergueu em direção ao céu. As mangas de sua túnica escorregaram até os bíceps, revelando os músculos compactos e a força graciosa de seus antebraços. Ele proferiu a conhecida fórmula de ação de graças:
— Bendiremos aquele de cuja liberalidade desfrutamos.
E o resto de nós murmurou:
— Bendito seja aquele de cuja liberalidade desfrutamos, e por cuja bondade vivemos.
— Damos-te graças, ó Senhor nosso Deus, por dar-nos esta boa terra como herança — ele disse como já havia dito tantas vezes — para que possamos comer de seu fruto e saciar-nos de sua fartura.
Porém, quando ele os deu para beber, a tremenda precipitação de não-familiaridade quase lhes arrancou o fôlego, pois ele sussurrou:
— O que vocês estão bebendo, todos vocês, é meu sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos para perdão dos pecados.
Sangue. Seu sangue.
A DECEPÇÃO é mascarada pela NEGATIVA:
— Foi profetizado: “Ferirei o pastor, e as ovelhas serão dispersas”[17]. Assim será. Porém, depois que for ressurreto, virei e irei à frente de vocês para a Galiléia.
— Não, não, não não! — Simão Pedro deve ter passado na frente de Jesus e se colocado na frente dele.
— Eu não! Ainda que todos os outros fujam por causa do senhor, eu não! Nunca vou fazer isso![18]
— Homem de pedra, vou lhe dizer a verdade — Jesus não falou com rancor nem como advertência, mas como simples fato. — Antes que o galo cacareje ao final desta noite, você negará ter qualquer conhecimento de mim. Irá me negar, Simão, não apenas uma, mas três vezes distintas.
— Não — uivou o discípulo, magoado. — Ainda que tenha de morrer com o senhor, eu nunca no negarei!
Jesus é preso sem oferecer resistência. “Todos os dias eu estive com vocês, ensinando no templo, e vocês não me prenderam. Mas as Escrituras precisam ser cumpridas”.[19] Simão tomou de uma espada e decepou a orelha de Malco — escravo do sumo-sacerdote.
— Largue essa espada — disse Jesus, enquanto absorvia com a orla do seu manto o sangue do escravo, e tornando em seguida a orelha novamente restaurada. — Eu já disse antes, Simão, mas você não estava escutando: todos que recorrerem à espada morrerão pela espada.
— Por que vocês saíram com espadas e malhos para me prender, como a um bandido? — Ele falava sem temor, eles ouviam sem ameaça.
Sem cerimônia, a PERSEGUIÇÃO expõe a DESCRENÇA. “… nos desviamos, cada um de nós se voltou para o seu próprio caminho”[20] “Então todos o abandonaram e fugiram.”[21]
Sexta-feira
Jesus é julgado, condenado, torturado e morto ilegalmente e injustamente. Antes de qualquer comentário, é preciso dizer que o povo judeu era regido por três sistemas legais: O Talmude — série de feitos e ensinamentos orais passados entre gerações; A Torah ou Pentateuco — primeiro cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio — e as Misnahs — espécies de súmulas editadas pelo povo judeu.
Foi uma sexta-feira, por volta das 23:00 horas, que se iniciou o maior escândalo judicial da história da Terra.
“55Os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio estavam procurando depoimentos contra Jesus, para que pudessem condená-lo à morte, mas não encontravam nenhum. 56Muitos testemunharam falsamente contra ele, mas as declarações deles não eram coerentes.”[22]. O procedimento criminal inteiro, no código Mosaico, repousa em quatro regras: certeza na citação; publicidade na discussão; liberdade total garantida ao acusado; e garantia contra todos os perigos ou erros de testemunho. O Sinédrio não dava origem, nem podia dar, a acusações, ele apenas investigava as que lhe eram levadas.
O testemunho das principais testemunhas constituía a acusação. Não havia outra denúncia, nenhuma outra citação formal. Até que eles falassem, e o fizessem em assembleia pública, o prisioneiro mal poderia ser considerado um acusado.
Os únicos acusadores conhecidos na jurisprudência criminal talmúdica são as testemunhas do crime. Seu dever é trazer o assunto ao conhecimento do tribunal, e prestar depoimento contra o criminoso. Em casos capitais, elas são também as executantes legais. Em lugar algum das leis dos hebreus existe qualquer traço de um promotor ou acusador oficial.
No Direito romano, um processo é uma peça modesta encenada por três atores apenas: o acusador, o acusado e o juiz. Pilatos, exercendo função de juiz profere sua declaração de inocência: “Não encontro motivo para acusar este homem”. (Lucas 23:4) Pressionado, porém, pelo frágil equilíbrio sócio-político da problemática Judéia, cede à pressão e condena Jesus.
À cruz, ferido o pastor, as ovelhas se dispersaram. Quatro discípulos correram o risco e permaneceram aos pés da cruz observando os malditos condenados agonizarem e morrerem: A mãe de Jesus e sua irmã (que também se chamava Maria), Maria Madalena e João.
— Eli! Eli! — Jesus está uivando — Lama sabachthani?
Meu Deus, meu Deus, Jesus está suplicando. Por que me desamparaste?
E ninguém responde. Ninguém.
Sábado
Em Marcos15:42 somos informados que o corpo de Jesus foi retirado da cruz e sepultado na “véspera do sábado”. No capítulo seguinte somos informados do que aconteceu quando “terminou o sábado”.[23] O que acontece no sábado?
Os judeus tem a tradição do shiva, a semana memorial depois da morte. Nesta semana memorial a família enlutada não deve ficar sozinha. Nas palavras do rabi Harold Kushner: precisamos nos lembrar de que fazemos parte de uma comunidade, que existem pessoas ao redor que se importam conosco e que integramos ainda a corrente da vida.
Muito frequentemente, quando me encontro com uma família depois de uma morte e antes dos funerais, ouço a pergunta: “Realmente precisamos de praticar o shiva, com toda aquela gente se aglomerando em nossa sala de estar? Não poderíamos pedir que nos deixassem a sós?” Minha resposta é: “Não, pois é exatamente disso que vocês precisam — deixar as pessoas entrarem em sua casa, em sua dor. Vocês precisam partilhar com elas, falar com elas, permitir que elas os confortem. Vocês precisam lembrar-se de que ainda estão vivos, como parte de um mundo de vida.
Mas no sábado da morte de Jesus voz nenhuma ergueu-se em lamentação pública. Era sabá. A lei religiosa proibia 39 formas diferentes de trabalho nesse dia. Podia-se consolar a pessoa enlutada como amigo ou parente. Mas não como profissional. Além disso, não se exigia em dia nenhum que a morte de um criminoso fosse lamentada. Jesus de Nazaré fora executado. Sua morte havia sido totalmente legal. Não era uma perda. Era a restauração da ordem e do bem público. Não se lamenta uma cura.
E aqueles que o amavam?
Escondiam-se.
Calavam o pesar. Ninguém em Jerusalém ouviu seu pranto, nem as autoridades nem o grande rebanho errante dos peregrinos que vieram para a Páscoa. Alguém calculou que o número de ovelhas sacrificadas naquela semana chegou a milhares. Era um mar vermelho-sangue tão vasto que a morte de um galileu mal causou respingo.
Aqueles que amavam Jesus também não queriam ser ouvidos, estavam apavorados.
Simão Pedro, João, Mateus, Tiago, André, Tome, Filipe — todos os 12, exceto Judas — voltaram, um por um e espontaneamente, à casa do essênio e ao salão superior onde fizeram a última refeição com o Mestre. Ali amontoaram-se durante todo o dia de sábado, por trás de portas trancadas.
As mulheres foram a Betânia.
Tantas Marias, todas como botões murchos: deixavam-se ficar ali aquela casa, sentadas com Marta e Lázaro. Maria, irmã destes, ergueu-se para servi-los. Trouxe toalhas umedecidas com água fria. Marta embalava-se, redonda como barrica, e ouvia os cânticos.
Maria, mãe do Senhor, ficava quieta por algum tempo, a cabeça baixa. Mas então a tormenta do pesar a atingia como golpe na testa: caía para trás, apertando as têmporas com as duas mãos, entregando-se aos lamentos. Seu cabelo fora outrora negro como o de seu filho. Agora, mesmo no bico-de-viúva, estava rajado de prata, e a espada transpassara-lhe a alma.
Algumas mulheres, que ladeavam a mãe enlutada, consolavam-na quando ela chorava. Meneavam a cabeça e murmuravam palavras de consolo, jogando-lhe ar fresco no rosto num esforço incansável, até que os soluços cedessem. Então também elas se viravam e ouviam os cânticos.
Maria Salomé, a mulher de Zebedeu, mãe de João e Tiago, também estava na casa, embora preferisse sentar-se um tanto afastada, atrás do grande braseiro de argila de Marta. Estava nos sepulcros quando enterraram Jesus. Ali também se havia escondido nas sombras. Maria Salomé ouvira as palavras que Jesus dissera na cruz. Todas elas — inclusive a terrível frase que unia a mãe dele ao filho dela, Salomé. E porque ele falava ali pregado ao instrumento que lhe dava a morte, o novo relacionamento pareceu solene.
Maria Madalena, os lábios exangues; em torno dos olhos, a pele tão azul e machucada; os dedos se contraindo como pernas de uma aranha; os ossos finos tremendo — essa Maria não chorava. Cantava, em vez. Minha voz pequena, infantil mesmo, como uma bolinha d´água. Mas fazia afinação perfeita. E a melodia era agradável.
Por isso as mulheres ouviam. Porque a melodia era suave e a canção, alegre. Não havia pesar no cântico. Cantiga para amar e dançar.
— Que nos agarrem as raposas — cantava —, as raposinhas que devastam os vinhedos. — Depois, doce, docemente. — Nossas vinhas florescem… venha!
E novamente cantava:
Meu amado fala e me diz:
Levante meu amor, vamos minha linda!
Pois o inverno passou e a chuva é finda,
as florinhas são vozes,
canção de todos os temas
e as rolinhas sorriem em nossa terra…
Maria Madalena parou no meio da cantiga. Refletiu por um momento. Depois disse: Seus cachos eram ondulados, negros como o corvo. Seus olhos eram pombas às margens dos rios, banhadas em leite, belas… As mulheres ouviam, e todas elas menearam a cabeça, concordando. Seus olhos eram como pombas. Sabiam o que Maria queria dizer.
Ah… O que acontece no sábado?
Nada acontece
Nada acontece
porque tudo acontece.
Em algum momento fora da história,
Deus profere sua palavra de glória.
Ninguém percebe,
o Espírito a rocha recebe
com a ordem que transcende.
De testemunhas Deus não depende
quando a morte fende.[24]
Domingo
O início de mais uma semana. Maria Madalena diz que viu o Senhor Jesus vivo. Simão a contesta mais rudemente do que seria necessário. Ele está furioso com ela. Está furioso com todo mundo. Ela sustenta o que disse. Todos ficaram surpresos com essa bravura. Afinal, essa era Maria.
As outras mulheres acreditam em Maria. Mais do que isso, expõem seus próprios argumentos. Joana, Susana, a mãe de Tiago e Salomé afirmam que quando levaram água, toalhas e unguentos ao sepulcro esta manhã, também não encontraram o corpo do Senhor. Invés disso foram recebidas por anjos radiantes e assustadores. Os anjos declararam que Jesus ressuscitou dos mortos e que, portanto, não há corpo em lugar algum. As mulheres juram que os anjos as enviaram até os discípulos — “a Simão Pedro em particular”, elas insistem enfaticamente, repetindo três vezes seguidas — para anunciar que Jesus irá adiante de nós para a Galileia.
— História tola — insiste Filipe.
Filipe está junto da porta. Ele passa o ferrolho depois que cada pessoa entra aqui. Tiago, da mesma forma, argumenta que mesmo que o Senhor esteja perambulando em algum lugar, vigoroso e saudável, é prudente manter a porta bem fechada.[25].
A terceira dimensão
Os evangelistas gastaram um tempo extraordinário descrevendo a última semana de Jesus. Esta é a semana da Paixão de Cristo. E, afinal, eu e você somos a paixão de Cristo — a razão pela qual Deus encarnou, viveu, morreu e ressuscitou.
Como a páscoa judaica celebra a libertação da escravidão egípcia recontando a história anualmente na festa do Pessach, os cristãos celebram a Semana Santa como o ponto histórico em que Deus consumou seu plano de salvação.
A Semana Santa, infelizmente (ou felizmente para alguns) foi transformada numa época de contação (ou cantação) de uma história emocionante — em alguns momentos até fantástica — que faz chorar até o mais durão dos sujeitos que aponta para um futuro de redenção e salvação mas esquece do presente.
Sob esta perspectiva, fiquei pensando em como a extraordinária semana santa se parece com a minha ordinária semana comum.
No Domingo sou capacitado pela Graça de Deus. Entendo o desafio de Jesus, levanto a mão no apelo como sinal de comprometimento com a vontade de Deus. Fico eufórico. Faço planos para praticar o que aprendi. Volto pra Betânia. Peço uma pizza. Assisto aos gols do Fantástico. Vou dormir cedo. Afinal amanhã é segunda-feira e quero acordar cedo pra fazer uma devocional caprichada.
Segunda-feira bem cedo desperto ainda sob o efeito do domingo. Esqueci alguns detalhes da mensagem — tinha alguma coisa sobre cruz e sofrimento, mas no final a vitória é certa! Leio a Bíblia e oro fervorosamente. Parto para minhas atividades com a certeza da VITÓRIA. No fim do dia, cansadão, volto a Betânia. Preciso ajudar minha esposa a cuidar do bebê (ela também teve seus desafios durante o dia), lavar a louça do jantar (os pratos não se lavam sozinhos!). Converso com minha esposa sobre a necessidade de um pequeno aperto no nosso orçamento para não fechar o mês no vermelho.
Na Terça e quarta-feira a coisa fica mais complicada. Já ouviu a expressão “matar um leão por dia”? Pois é. Acordar mais cedo para o momento devocional vai ficando mais difícil. Minha oração fica rápida e rasa. Parece que Deus não quer atuar segundo nossa agenda — nossas necessidades pessoais. Tento convencer a mim mesmo: “não vou desistir”. Mas não tenho a força necessária pra me manter fiel. Voltamos pra Betânia cabisbaixos.
Na Quinta-feira há uma chance de me reencontrar com Jesus, mas as pressões, confrontos e desafios nos fazem duvidar se de fato Deus está do nosso lado. Jesus tenta nos ensinar sobre entrega, rejeição, ressurreição, quem é o nosso próximo mas como nada disso consta da nossa agenda caímos no sono. Fugimos.
E chega a Sexta-feira. Encontro com alguns amigos e — quase em uníssono — repetimos: Estou morto! Morto de cansaço físico; Morto de vergonha por não ter cumprido meu planejamento semanal; Morto de medo de que Deus descubra que eu não fui um bom cristão e me puna de alguma maneira. Me escondo atrás de um bom filme, um bom livro, um happy hour com os amigos, um namorinho com a esposa… mas lá no fundo eu sei que estou exausto.
Sábado? Como o nome diz, o melhor a fazer é nada, quem sabe se juntar com um grupo de amigos, bater uma bola, queimar uma carninha e reclamar da vida, da igreja, do pastor e até de Deus!
Felizmente o Domingo chega! Deus nos ressuscita! Ouvimos novamente a Palavra, participamos juntos em comunidade e descobrimos que não somos assim tão diferentes dos primeiros seguidores de Jesus.
Paulo diz que fomos “crucificados com Cristo”[26] e também que “Deus nos ressuscitou com Cristo”[27]. Como escreve Walter Wangerin no romance “O Livro de Jesus”: Somos Adão. Somos um barro embotado e informe. Jesus é o Senhor Deus, o Criador no Jardim do Éden, soprando vida nas narinas do primeiro homem, e estamos nos tornando seres viventes — novamente. Precisamos que o Senhor, que é nosso pastor, “restaure nossa alma”[28] — assaltada todos os dias pelas intempéries das nossas circunstâncias. Em meio aos soluços de choro, ajoelhado, Simão consegui um jeito de responder:
— Senhor, o senhor sabe todas as coisas. O senhor sabe que o amo.
Jesus baixou as mãos aos ombros de Simão e, como se ele não passasse de estopa, içou o homenzarrão até que pousasse sobre os próprios pés. Beijou-o. Com a manga da túnica, enxugou as lágrimas de Simão. Tomou o rosto barbado entre mãos e segurou apertado.
— Então, faça o trabalho que estou lhe dando para fazer — Jesus disse. — Pastor valentão, alimente minhas ovelhas.
Simão Pedro tentou assentir com a cabeça, mas as mãos ainda o seguravam. Alto como era, Jesus parecia ainda mais alto do que ele. Intenso como era normalmente, Jesus parecia ainda mais majestoso, pois resplandecia, luz brotava dele como de uma fonte.
— Verdadeiramente — Jesus disse —, quando era novo, você amarrava o cinto ao redor de si mesmo e ia para onde decidia ir. Porém, quando os anos passarem e você for muito mais velho, estenderá as mãos e outra pessoa amarrará o cinto ao redor de você e irá levá-lo para onde não deseja ir. Estou lhe dizendo isso afim de mostrar o tipo de morte pela qual você irá glorificar seu Pai celeste.
— Simão! Siga-me!
Bibliografia consultada:
Eli Lizorkin-Eyzenberg – Purificação do Templo. Por que João é tão diferente dos Sinóticos? (João 2:14-17)
Harold Kushner – Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas
Harold Kushner – The Lord Is My Shepherd
Israel Belo de Azevedo – Cronologia poética das últimas semanas de Jesus na terra
Roberto Victor Pereira Ribeiro – A Prisão de Jesus Cristo sob a ótica do Direito
Walter Wangerin – O Livro de Deus, Mundo Cristão
Walter Wangerin – O Livro de Jesus, Mundo Cristão