Judas entregou Jesus a soldados romanos com um beijo. Segundo a Bíblia Judas Iscarotes foi, nos últimos 2 mil anos, sinônimo de traidor. Ano passado, seus pecados pareciam perdoados. Uma tradução feita de seu evangelho, que passou muito tempo perdido em uma caverna no deserto egípcio, revelava que ele não havia, como se acreditava, apunhalado Jesus pelas costas. Só que a redenção durou pouco.
Pesquisadores revelam agora que houve um erro na tradução dos manuscritos. E ela ocorreu justamente na parte em que Judas virava mocinho. Os manuscritos do Evangelho de Judas – que ganharam agora uma versão romanceada em português lançada pela Bertrand Brasil, “O Evangelho Segundo Judas”, do escritor britânico Jeffrey Archer e do teólogo australiano Francis J. Moloney – foram originalmente escritos em copta, há cerca de 1700 anos.
A tradução deles, após anos de pesquisa, foi apresentada em abril de 2006 pela Fundação Mecenas, da Suíça. E trazia uma revelação bombástica: em vez de traidor, Judas emerge como um herói. Ou seja, ele teria entregado Jesus aos soldados romanos, que o crucificariam depois, atendendo a um pedido do próprio.
Um ano e meio após a revelação de sua tradução, o evangelho ainda causa polêmica. Uma corrente de historiadores – tão competentes quanto os que traduziram o documento – discorda da versão publicada em 2006. “Desde a publicação do Evangelho de Judas, eu e meus colegas temos feito diversas reuniões para discutir o texto, sua tradução, edição e interpretação”, afirma Louis Painchaud, professor da Faculdade de Teologia e de Ciências da Religião da Universidade de Laval, no Canadá.
“Percebemos que a reconstrução textual de certas passagens lacunosas estavam equivocadas. E também que havia erros na tradução de outras passagens e que, por fim, a interpretação de certas expressões continha diversos contra-sensos.” Um dos principais equívocos apontados é quanto à tradução da palavra grega daimon, relacionada a Judas e seu evangelho.
Os responsáveis pela tradução – o filólogo e arqueólogo suíço Rodolphe Kasser, o especialista em copta americano Marvin Meyer, o professor de história eclesiástica alemão Gregor Wurst e o historiador americano Bart Ehrman – utilizaram a palavra “espírito” (“Tu, décimo terceiro espírito, por que te esforças tanto?”, diz o evangelho de Judas). “Traduziram daimon como espírito baseando-se na significação da palavra quando é utilizada na literatura platônica. Isso significaria que Judas seria um ser espiritual ou celeste”, diz Painchaud. “Mas, na realidade, a palavra daimon no contexto da literatura cristã primitiva designa sempre seres dos infernos ou diábolicos, ou seja, demônios.”
O historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concorda com Painchaud. Para ele, o evangelho traduzido cai em contradição por si só ao montar a figura de Judas. “Se por um lado temos um Judas com acesso aos mistérios divinos, por outro temos um Judas apontado como um demônio”, diz.
O historiador Birger Pearson, professor de Estudos Religiosos da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, tem a mesma opinião sobre a ambigüidade do Evangelho de Judas. “Não concordo com a tradução publicada de Judas como um herói. Mas não estou certo quanto a ele ser um vilão”, afirma. “Claramente, é o receptor confidencial das revelações de Jesus e é representado como possuidor do conhecimento de quem Jesus é – e que é negado aos doze.”
Um dos tradutores da Fundação Mecenas, Bart Ehrman, diz não estar interessado em um debate público sobre o tema, mas mantém a versão publicada: “Penso que Judas é definitivamente um herói. É superior a todos os apóstolos nesse texto”.